Falta de manutenção descaracteriza obras paisagísticas de Burle Marx espalhadas pelo Rio


RIO — O reconhecimento do Sítio Burle Marx, em Guaratiba, como Patrimônio Mundial da Unesco é um convite para o carioca conhecer outras obras, distribuídas pela cidade, desse artista múltiplo. São dezenas, algumas praticamente desconhecidas do grande público. Em 2009, ano do centenário do paisagista Roberto Burle Marx, morto em 1994, a prefeitura do Rio publicou um decreto com o tombamento provisório de 83 trabalhos. A lista inclui jardins em praças públicas e endereços privados, painéis e muros escultóricos.

O texto considerava a necessidade de salvaguardar essas obras de ações que prejudicassem sua integridade. Em alguns casos, porém, a preservação ficou apenas na intenção. Parte do legado está em péssimo estado, por falta de manutenção adequada.

— Muitos dos espaços projetados por Burle Marx e seus colaboradores não são conhecidos e, por isso, não compreendidos por parte da população como um patrimônio. Alguns estão necessitando de cuidado maior de manutenção, como é o caso da calçada de pedras portuguesas da Avenida Atlântica e seus grupamentos vegetais, que precisam de revisão especializada para replantio e restauro do piso. Outro espaço semelhante é o Parque do Flamengo, obra mais importante de Burle Marx na cidade do Rio, e que precisaria de um olhar mais delicado sobre esse patrimônio vivo, público e democrático da cidade. A Praça Senador Salgado Filho, em frente ao Aeroporto Santos Dumont, que já foi importante praça de “entrada” da cidade, é outro exemplo, pois hoje está descaracterizada e com poucos cuidados — relata Isabela Ono, diretora-executiva do Instituto Burle Marx.

Praça descaracterizada

A Praça Senador Clóvis Salgado Filho é uma unanimidade entre os apreciadores da obra de Burle Marx, que a consideram a mais abandonada e desfigurada de todas. Uma equipe do GLOBO tinha estado no local há dois anos e, na época, constatou problemas como lago sem água e tomado pela sujeira, parte da grama morta e ralos quebrados. Um retorno, na semana passada, mostrou que, se alguma coisa mudou, foi para pior.

Praça esquecida. Ao lado do Teatro Armando Gonzaga, só há grama seca e lixo
Praça esquecida. Ao lado do Teatro Armando Gonzaga, só há grama seca e lixo Foto: Roberto Moreyra/Agência O Globo

— É um jardim que Burle Marx criou para receber os turistas. Tinha exemplos de nossa flora local. A ideia era ambientar o visitante com a natureza do Rio de Janeiro, mas perdeu completamente esse sentido. É um pedaço do Aterro que está muito malcuidado — critica a professora da Uerj e historiadora da arte Vera Siqueira.

Isabela, que é filha de Haruyoshi Ono, grande parceiro profissional do paisagista, considera que a iniciativa do tombamento dos trabalhos, que inclui a praça em frente ao aeroporto, foi um importante movimento para a preservação das obras, que não se concretizou.

— Na época do tombamento, alguns locais já estavam descaracterizados e outros já não existiam. Alguns jardins foram recuperados principalmente por conta desse decreto, como o do Instituto de Resseguros do Brasil. Burle Marx pensou os espaços das cidades em diálogo com os elementos naturais, com a paisagem carioca, conjugando estética e arte na criação de ambientes democráticos e de convivência entre o homem e a natureza. Importante compreender a importância desses espaços como patrimônio de toda a sociedade e, assim, valorizá-los e preservá-los — disse.

Grama seca e sujeira

É possível encontrar outros exemplos de descaso com o trabalho do paisagista. Na Praça do Teatro Armando Gonzaga, em Marechal Hermes, na Zona Norte, a situação também é crítica. Distante do projeto original, não dá nem para perceber que ali, um dia, existiu um jardim que já foi motivo de orgulho dos moradores. Na semana passada, o que se via no local eram grama seca, sujeira e um grupo de moradores de rua acampados próximo à parede do teatro.

Espelho d
Espelho d’água do Museu de Arte Moderna (MAM) também sofre com falta de limpeza Foto: Roberto Moreyra

— Era um espaço bonito e bem cuidado. Muita gente usava como cenário para fazer as fotografias de casamentos realizados numa igreja aqui perto. Agora, não dá nem para trazer as crianças para brincar — lamentou a dona de casa Maria Emília Rocha, de 57 anos, moradora do bairro.

No Largo da Carioca, no Centro, o principal problema é a desordem urbana, que esconde a beleza dos desenhos dos mosaicos no calçamento de pedras portuguesas. O local está tomado por camelôs que, apesar dos esforços da prefeitura para ordenar o comércio ambulante na região, ainda são encontrados vendendo livremente um pouco tudo: de óculos e máscaras de proteção facial a uma grande barraca caldo de cana. Em um dos extremos também podem ser encontrados muitos moradores de rua.

Situação parecida é encontrada no Largo do Machado, onde havia muito lixo dentro de um lago, na semana passada. No entorno do MAM, no Aterro do Flamengo, um dos espelhos d’água estava vazio, e outro, com muita sujeita. Também havia árvores secas e sem poda. No terminal dos bondinhos de Santa Teresa, no Centro, o que era para ser uma obra de paisagismo virou um imenso matagal.

Na Praça Santos Dumont, na Gávea, o chafariz do jardim está desligado e faltando um pedaço da grade.Em outra praça da Zona Sul, a Chaim Weismann, no Flamengo, o descaso também impera. No Instituto de Puericultura e Pediatria da UFRJ, onde há um belo painel de Burle Marx, o problema está no entorno. Há dois anos, O GLOBO mostrou o projeto de paisagismo no passava despercebido porque o espaço virou um estacionamento. Por lá também nada mudou. No caso do Palácio Gustavo Capanema, no Centro, a barreira para apreciar o belo trabalho paisagístico, como um jardim suspenso projetado por Burle Marx são os tapumes de uma obra interminável, iniciada em 2014.

Jardins privados

A historiadora Vera Siqueira diz que mesmo os jardins privados que foram projetados por Burle Marx enfrentam situação parecida com os que estão localizado nos espaços públicos. Ou seja, uns estão bem cuidados e outros, nem tanto. Outros, segundo ela, se transformaram tanto que não dá nem para reconhecer mais a origem do trabalho de Burle Marx. Porém, ela reconhece que a conservação não é fácil.

Terminal de bondes para Santa Tereza, na Rua Lélio Gama, no Centro, tem composição abandonada Foto: ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo
Terminal de bondes para Santa Tereza, na Rua Lélio Gama, no Centro, tem composição abandonada Foto: ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo

— A planta é viva, cresce, morre, pega doença e precisa de um trabalho realmente de conservação que nem sempre acontece. O próprio Aterro ainda é bem cuidado em algumas partes. Um jardim privado que virou público, que é o do Instituto Moreira Salles, é super bem cuidado. Tiveram problema com queda de arvores durante uma chuvarada, mas refizeram de acordo com o projeto. Tem alguns exemplos bons e outros nem tanto — diz, acrescentando que o tombamento ou mesmo o reconhecimento internacional, por si só não garantem a preservação. — O Sítio Burle Marx é tombado nas três esferas, a municipal, a estadual e a federal. Mesmo assim, a conservação dele é feita porque é Iphan quem banca, dentro do seu orçamento, com todas as dificuldades que enfrenta. Tem cuidados, os jardineiros são muito dedicados. Mas só o tombamento não adianta, assim como o reconhecimento internacional, porque há bens que foram chamados de patrimônio mundial antes mas que, atualmente, estão sendo retirados dessa lista porque não mantiveram a sua integridade, como eles chamam.

Para o arquiteto Sérgio Magalhães, não é só o Rio que cuida mal de sua área pública. Isso acontece em outros lugares. Porém, na sua opinião, a cidade tem espaços magníficos, que mereciam mais atenção não apenas da prefeitura, mas também da sociedade.

— Quando você tem obra prima como utilidade pública e ela não está conservado suficientemente, o caso é mais complicado. E o Rio tem do Burle Marx obras espetaculares, únicas no mundo. Um exemplo são as calçadas da Avenida Atlântica, de pedras portuguesas e desenhadas por Burle Marx. São uma pintura com quatro quilômetros de comprimento. E elas precisam ser bem conservadas. Não estão, mas a conservação delas não é uma atribuição só do município. Precisa ser também compartilhada pelos proprietários dos prédio fronteiros, que aliás é o que a lei determina. No caso da Avenida Atlântica, seria da prefeitura o canteiro central e o calçadão de ondas. Isso tudo teria de estar um brinco. É um presente gigantesco que a cidade recebeu. Outro exemplo é o Aterro do Flamengo — afirma o arquiteto, que destaca a importância de Burle Marx para o paisagismo e a cidade. — Ele é um artista com prestígio crescente no mundo. É pioneiro na identificação de valores locais que ficaram esquecidos. Dar valor para a natureza é uma coisa que hoje soa muito bem aos corações do mundo todo, que estão preocupados com o clima e com o planeta. A obra dele sinaliza nessa direção, além de ser muito rica em vários aspectos. Ele é um artista múltiplo.

A prefeitura fala

Procurada, Prefeitura do Rio enviou a seguinte resposta sobre as situações encontradas:

“A Secretaria Municipal de Conservação vai enviar equipe para fazer vistorias em todas as praças citadas na reportagem, ao longo da primeira quinzena de agosto, e programar o restauro nos trechos danificados de pedras portuguesas, além do reparo na grade da Praça Santos Dumont, na Gávea.

A Gerência de Monumentos e Chafarizes, vinculada à Seconserva, informa também que fará vistoria, na próxima semana, para programar o serviço de limpeza nos lagos do MAM, na Glória, da Praça Senador Clóvis Salgado Filho, no Centro, e do Largo do Machado, no Catete.

Com relação ao Chafariz da Praça Santos Dumont, na Gávea, o órgão esclarece que já está realizando o levantamento orçamentário das peças necessárias para fazer o conserto do equipamento, a fim de colocá-lo em funcionamento novamente.

A Comlurb informou que a Praça Chaim Wrizman, em Botafogo, o Terminal do Bondinho de Santa Teresa e a Praça Senador Clóvis Salgado Filho, no Centro, e a Praça Santos Dumont, na Gávea, recebem limpeza diária no 1º turno e roçada a cada quinze dias. A Comlurb também promoveu este mês na Praça Senador Clóvis Salgado Filho uma poda de limpeza das palmeiras e de livramento de luminárias, cobertas por alguns galhos (seguem fotos). Todas as intervenções foram acompanhadas por engenheiros florestais e agrônomos da Companhia.

No entorno do MAM Parque do Flamengo, é feita limpeza diária em dois turnos e roçada a cada quinze dias. Em relação ao serviço de poda, a Comlurb realizou recentemente, final de maio e início de junho, uma grande ação de manejo de árvores em todo o Aterro do Flamengo, inclusive o entorno do MAM (conforme fotos). Todo o serviço foi acompanhado por engenheiros florestais e agrônomos da Companhia, respeitando o projeto paisagístico Roberto Burle Max.

No Largo da Carioca e no Largo do Machado, é feita limpeza diária em três turnos e roçada a cada quinze dias. Na Praça do Teatro Armando Gonzaga, em Marechal Hermes, a Comlurb informa que o local está roçado e recebe limpeza em dias alternados. Há uma área interna com mato alto, mas é de atribuição do Governo do Estado.

Já o Instituto de Puericultura da UFRJ, trata-se de uma área federal de atribuição da Prefeitura da UFRJ.

Em relação às pessoas em situação de rua, a Secretaria Municipal de Assistência Social, informa que, no entorno do MAM, há ações periódicas da Equipe de Abordagem Social Especializada/24h para atendimento social e acolhimento. Há também ações conjuntas com a Comlurb, Guarda Municipal, Subprefeitura do Centro, como a realizada na semana passada, quando o local foi limpo e organizado.

E na praça do Teatro Armando Gonzaga, em Marechal Hermes, a SMAS envia equipe do CREAS Márcia Lopes ao local periodicamente e constatou que não são moradores de rua que lá frequentam. São moradores de residências próximas que se reúnem na praça, geralmente para ingerir bebida alcóolica.

Por fim, a Fundação Parques e Jardins está atenta aos espaços projetados por Burle Marx, assim como às demais áreas verdes da cidade que ficaram sem receber a devida manutenção nos últimos anos. A FPJ recebeu os parques e praças do Rio em péssimo estado de conservação e nesses primeiros 180 dias de gestão intensificou as ações para a recuperação desses locais. Foram recuperadas mais de 200 praças, 6 parques públicos reabertos, 216 vistorias realizadas, 1.374 mudas de árvores plantadas e 4.600 mudas de arbustivas para a revitalização de canteiros em praças, parques e jardins da cidade. Todos os projetos desenvolvidos pela FPJ contam com a participação de outros órgãos e secretarias municipais, que realizam mutirões de ações conjuntas para a revitalização desses espaços”.





Fonte: G1