Estado do Rio enterra mais de R$ 1 bilhão por ano em material reciclável

O estado do Rio enterra, literalmente, mais de R$ 1 bilhão por ano em material reciclável. A conta é a seguinte: dos 7,98 milhões de toneladas de resíduos sólidos que poderiam ser reaproveitados, mas são descartados a cada doze meses, apenas 39,9 mil toneladas vão para a reciclagem. Trata-se do equivalente a 0,5% do total. O restante é despejado em 20 aterros sanitários licenciados e nos cinco lixões a céu aberto espalhados pelo estado. Os dados são do Mapeamento dos Fluxos de Recicláveis elaborado pela Firjan. Segundo o estudo, só os lixões recebem cerca de 319 mil toneladas de resíduos sólidos reaproveitáveis, quantidade oito vezes maior do que a coleta seletiva arrecada.

Crime ambiental

A lei federal nº 12.305, de 2010, determinou que lixões deveriam ter sido desativados até 2014 e caracterizou esse tipo de descarte irregular como crime ambiental. O Instituto Estadual do Ambiente (Inea) aponta que o Rio ainda tem cinco dessas instalações, que recebem resíduos sem quase nenhum controle e proteção do ambiente do entorno.

Quatro dos lixões no estado ficam em municípios próximos à divisa com Minas Gerais e Espírito Santo: Miracema, Porciúncula, Itaperuna e Bom Jesus do Itabapoana. Teresópolis é a única cidade fora do Noroeste Fluminense sem a adequação da gestão de seus resíduos: junto ao material orgânico do lixão de Fischer, onde mais de 40 mil toneladas anuais de resíduos são dispostas, há material reciclável, hospitalar e todo tipo de restos e de sucata.

Especialista em Sustentabilidade da Firjan, Carolina Zoccoli explica que, quando um lixão é encerrado, como aconteceu em Duque de Caxias (Jardim Gramacho) e São Gonçalo (Itaoca), precisa ser submetido a medidas como a verificação frequente de eventual contaminação do solo, da presença de animais invasores e vetores de doenças, e a confirmação de que não há mais pessoas vivendo ou trabalhando por ali:

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— A gestão de resíduos é muito complexa para municípios de menor porte, que não têm uma grande arrecadação. Remediar um lixão é um processo que leva anos e o impacto ambiental que deixam perdura por décadas. Apesar de ser uma obrigação legal (o fim dos lixões) e não haver nenhuma justificativa para não ser feito, os prefeitos ficam entre a cruz e a espada pois não conseguem instalar, com recursos da prefeitura, um aterro sanitário. Além de ser uma obra de infraestrutura cara, a gestão do espaço também não é barata. Essa estimativa de R$ 1 bilhão de recicláveis enterrados por ano ainda é conservadora, uma vez que, ao contrário dos aterros sanitários, não temos como precisar tudo o que vai para os lixões.

Coleta seletiva e lixões
Coleta seletiva e lixões

Apesar de, em sua composição, predominarem materiais tecnicamente recicláveis, hoje, segundo o Inea, 1,4% dos resíduos sólidos gerados no Estado do Rio são encaminhados para lixões, enquanto 98,6% são enviados para aterros sanitários, estruturas licenciadas e ambientalmente preparadas para receber lixo.

Além do evidente impacto ambiental negativo dos lixões, a perda do valor do material ali depositado é imediata: quando há alguma recuperação de valor do reciclável, ela é baseada na atividade de catadores, com pessoas expostas a condições precárias de trabalho.

Municípios que não investem na destinação correta de seus resíduos também enfrentam dificuldades para receber o ICMS Ecológico, mecanismo tributário do governo estadual que garante às prefeituras um repasse maior de ICMS.

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O EXTRA foi até Teresópolis, única cidade serrana com um lixão em seu território, destino de praticamente todos os resíduos sólidos do município. O lixão do Fischer, à beira da BR-116, já abrigou cenas macabras, como o encontro de um bebê recém-nascido, e morto, em fevereiro deste ano. Lá trabalham mais de 100 pessoas todos os dias, em meio a centenas de urubus e um entra e sai contínuo de caminhões, ora despejando lixo ora comprando recicláveis dos trabalhadores. O expediente vai de 7h a 17h, de segunda a sábado.

João André da Silva Neto, de 38 anos, está há seis anos no lixão serrano. O montante que levanta por semana com a venda de recicláveis oscila: vai de R$ 500 aos mais de R$ 1.500 que já apurou nos melhores momentos.

— Se a gente vivesse num país onde todo mundo separa seu lixo reciclável, isso (o lixão) não precisaria existir. A gente precisa catar material no meio de comida, entulho, mato, tudo misturado. Até vidro, com o risco da gente se cortar. É por isso que a maior parte do que daria para se reciclar, se perde. Com a pandemia, o desemprego cresceu e refletiu em menos recicláveis chegando aqui, porque já tem muita gente catando pelas ruas — ensina o catador.

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João conta que também consegue fazer dinheiro quando acha algo de valor, porque “o rico não doa, prefere jogar fora”.

— Com a pet, consigo R$ 1 no quilo. Sucata é uns R$ 70. O papelão não vale nada, só R$ 0,15 o quilo, enquanto o alumínio sai a R$ 5,50 e o metal a R$ 17. Mas também já achei celular, relógio, câmera, brinquedo, videogame e mangás que consegui reaproveitar e até vender para colecionadores. Já achei uma boneca novinha que lavei e levei para a minha filha brincar — diz.

Stefane Gomes da Silva tem 23 anos, trabalha há dois no lixão do Fischer e ganha, em média, R$ 260 por dia. Ela decidiu ir para lá quando perdeu o emprego de manicure e cabeleireira. Outra das mulheres que tiram seu sustento deste local insalubre, Vera Lúcia de Souza Costa trabalha como catadora há seis anos:

— Eu cato bem pouco porque não consigo trabalhar muito. Por semana, tiro uns R$ 150. Tenho problema de coluna, dez hérnias de disco, então ninguém me dava emprego. Só cato garrafa pet e latinha, e, às vezes, papelão. Para eu poder comprar meus remédios para dor, preciso fazer isso.

Procurador-geral de Teresópolis, Gabriel Palatnic admite que o lixão é um problema histórico do município, mas afirma que a administração vem buscando uma solução: a expectativa é de que, ainda em 2022, seja feita uma licitação para o transbordo dos resíduos.

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A catadora Stefane Gomes mostra os alimentos que achou no lixão do Fischer
A catadora Stefane Gomes mostra os alimentos que achou no lixão do Fischer Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

— Em 2019, fizemos uma cotação no mercado e o transbordo (para um aterro sanitário) custaria cerca de R$ 840 mil por mês, mas a pandemia atrapalhou nossos planos. Hoje, com o aumento do diesel, esse valor já deve estar bem maior. Por isso, estamos buscando junto ao estado algum apoio para que possamos financiar essa operação, que é muito custosa para o nosso orçamento. Sabemos que é uma responsabilidade nossa e precisamos dar um fim a esse drama — resume Palatinic.

A prefeitura de Teresópolis informou que está em andamento a negociação para a suspensão do despejo no lixão do Fischer com o transbordo dos detritos, pelo período de dois anos, para o aterro sanitário de Itaboraí, e confirmou que está buscando recursos junto ao governo estadual para a efetivação desse procedimento.

O lixo pelo estado

A reutilização de recicláveis perdidos na cadeia produtiva industrial seria capaz de gerar R$ 4,56 bilhões de renda no estado do Rio — incluído aí o bilhão “enterrado” a cada ano —, além de cerca de 16.500 mil empregos diretos e indiretos, segundo a Firjan.

O estudo ainda mostra que a coleta seletiva de Nova Iguaçu, Nilópolis, Paracambi, Seropédica, Queimados, Japeri, Itaguaí e Mangaratiba se restringe a 0,05% do volume gerado nessas cidades. Nos municípios de Duque de Caxias, Belford Roxo, São João de Meriti, Magé e Guapimirim são aterrados, todo ano, mais de R$ 100 milhões em resíduos que poderiam ser reciclados. No Noroeste Fluminense, os lixões recebem mais da metade dos resíduos gerados, enquanto o Leste Fluminense despacha quase 500 mil toneladas de recicláveis para aterro.

Não foi feito um recorte específico da cidade do Rio, uma vez que a capital tem uma gestão de resíduos mais estruturada, explica Carolina Zoccoli: — Os resíduos da capital são adequadamente direcionados para o aterro CTR Rio, em Seropédica.

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Ainda de acordo com o levantamento, dos 92 municípios do estado do Rio, cinco não forneceram dados sobre a gestão de resíduos referente a seis anos consecutivos do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), de 2015 até 2020: Búzios, Araruama, Comendador Levy Gasparian, Engenheiro Paulo de Frontin e Rio das Flores. A prefeitura de Búzios argumenta que o período em questão se refere à gestão municipal anterior e que “foi um período de extrema instabilidade política, a qual prejudicou sobremaneira a continuidade da gestão ambiental”. Os demais municípios não responderam.

Renato Paquet é fundador da Polen, startup que vende todo tipo de materiais recicláveis pela internet e tem atuação em todas as regiões do Estado do Rio. Ele afirma que investir em planos de gestão de resíduos municipais que levem em conta a economia circular e a reciclagem são um estímulo econômico social para o correto tratamento dos resíduos.

— O estado do Rio preciso ter um cuidado dobrado com a destinação correta dos resíduos sólidos gerados nos centros urbanos, pois uma inadequada destinação destes materiais impacta diretamente os ecossistemas que compõem o estado como rios e florestas preservadas. Como as áreas verdes se conectam com o oceano a partir dos rios, a má gestão dos resíduos no interior do estado pode causar não somente um impacto local, mas regional, pela chegada dos resíduos aos oceanos — afirma o ecólogo.

Fonte: G1