Espaço criado por dois moradores de rua no Centro chama atenção: ‘Tudo bem cuidado’


Lençóis e colchas sempre limpas. Materiais de limpeza e de higiene pessoal ordenados lado a lado fazem companhia a ursos de pelúcia e brinquedos. As roupas são lavadas e dobradas. A delicadeza e o cuidado com que dois moradores em situação de rua organizam objetos recolhidos no lixo têm chamado a atenção de quem passa pela Avenida Rio Branco, no Centro do Rio. Os amigos Guilherme Lúcio de Oliveira, de 30 anos, e Rodrigo Lysias de Oliveira Lima, de 32, moram há cerca de três meses embaixo da marquise do Clube Militar, altura da Cinelândia. No local, eles montaram uma espécie de “casa na rua”.

— Tudo que tenho, encontrei no lixo. Menos o material de limpeza, que ganho ou compro. Eu tinha vergonha de que os outros me vissem jogado na rua, por isso resolvi arrumar tudo. A limpeza, quase que diária dos objetos, é uma forma de terapia para mim. Aqui é tudo bem cuidado — conta Gulherme, que vive na rua há quase três anos.

Após cumprir pena por tráfico, Gulherme foi liberado em 2018 e não encontrou nas ruas a oportunidade que precisava para recomeçar a vida. Ex-morador de uma comunidade na Zona Norte do Rio, tentou ser ajudante de pedreiro e trocador de van, mas não conseguiu se estabelecer e foi para a rua. Por conta do tráfico, não pode voltar para o bairro onde morou. Não tem documentos. Não sabe ler ou escrever.

O morador de rua Guilherme Lúcio de Oliveira tem chamado a atenção
O morador de rua Guilherme Lúcio de Oliveira tem chamado a atenção Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Certa vez conseguiu falar com a tia pelo telefone quando uma antiga vizinha o reconheceu no Centro. Nem as dificuldades encontradas nas calçadas do Rio conseguiram tirar a esperança de dias melhores.

— Eu me arrependo do caminho que escolhi. Se pudesse voltar a ser criança, faria o certo. Espero que a vida mude, que consiga uma oportunidade de construir uma família. Tenho fé em Deus que isso vai acontecer. Eu preciso de um lar. Hoje, faço bicos para sobreviver.

Quem compartilha a rotina com Guilherme é o “irmão de rua” Rodrigo, que também foi condenado e preso por tráfico. Hoje, Rodrigo não tem mais contato com a família, que mora em Queimados, na Baixada Fluminense. Diariamente os dois varrem a calçada e trocam as roupas de cama. Os dois amigos deixam claro: não gostam de sujeira.

— Somos chatos com as nossas coisas. Lavamos as roupas e colchas lá no MAM (Museu de Arte de Moderna, no Aterro do Flamengo), onde tomamos banho. Aqui é só uma fase, vai passar — acredita Rodrigo.

Guilherme e Rodrigo varrem a calçada onde moram há três meses
Guilherme e Rodrigo varrem a calçada onde moram há três meses Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

A comida, quando não distribuem quentinhas, pedem em restaurante.

— Nós não temos vergonha de pedir se for preciso — diz Guilherme.

A vida nas ruas não foi capaz nem de tirar o bom humor dos dois.

— Uma mulher que passou aqui na rua falou “nem lá em casa é arrumado assim” e ficou zoando o marido dela — conta Guilherme, que ri e lembra de outra história: — Já ouvi pessoas na farra da noite, bêbadas, dizendo que dariam tudo para dormir nas nossas camas.

‘Reparem o cuidado, o capricho’: foto repercute nas redes

A história dos dois chegou a viralizar também nas redes sociais. Uma foto tirada pelo artista visual Marcos Chaves foi parar no Instagram da atriz Drica Moraes: “Foto tocante. Muito desemprego, muito morador de rua. Percebam o capricho e o cuidado com essa ‘casa de rua'”. O vereador Chico Alencar (Psol) tambem publicou uma foto nas redes sociais, tirada por Fabio Pereira. “Reparem o cuidado, o capricho, a limpeza. Ninguém gosta de morar na rua. Ninguém deseja isso”.

Prefeitura aponta 7,2 mil pessoas nas ruas da cidade

A Prefeitura do Rio divulgou, no fim de dezembro, o Censo feito entre 26 e 29 de outubro de 2020, apontando para a existência 7.272 pessoas em situação de rua na cidade. O número representa quase a metade dos 14 mil encontrados numa pesquisa feita em 2016. A prefeitura justificou que a diferença se deu por conta da metodologia.

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Fonte: G1