Em 2020, no auge da pandemia, as ruas ficaram quase desertas. O combate ao coronavírus impôs medidas como o isolamento social. Os engarrafamentos desapareceram, e o caminho ficou livre para motoristas que ignoram as leis de trânsito. A emissão de multas por fiscalização eletrônica no Rio naquele ano deu um salto de 56,2%, em comparação a 2019. Dados da CET-Rio mostram que foram registrados 2,5 milhões de infrações, contra 1,6 milhão do período anterior. O desrespeito aos limites de velocidade e ao sinal vermelho se manteve no ano passado quando os “pardais” flagraram 2,7 milhões de irregularidades — 68,7% em relação à última temporada antes da Covid-19.
Leia mais: AfroGames abre dois novos polos na Maré para atender cerca de 200 jovens da Nova Holanda e do Timbau
Na contramão das multas ladeira acima, ficou a arrecadação. Isso porque o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) baixou uma portaria, em março de 2020, suspendendo as notificações e os prazos para recursos. Essas medidas só foram restabelecidas no ano seguinte, provocando o efeito cascata: motoristas foram surpreendidos muito tempo depois com cobranças de infrações que já nem se lembravam mais de ter praticado. Se em 2019 os cofres da prefeitura receberam R$ 148 milhões, o total despencou para R$ 69 milhões no primeiro ano da pandemia.
Uma enxurrada de 15 multas entregues a partir do fim do ano passado assustou o taxista Renato Simões, de 41 anos, morador da Ilha do Governador. A sucessão de infrações vem de 2020. Juntas, somam cerca de R$ 3 mil. Ele disse que está recorrendo. O profissional reconhece que, como as notificações estavam suspensas e não estavam sendo enviadas, deu uma relaxada, mas alega que a maioria é injusta.
— A gente roda de 12h a 14h por dia na rua e acaba cometendo uma falha ou outra ao passar por um radar, mas tem muita injustiça. Por exemplo, moro na Ilha do Governador, e uma das multas foi de um radar na Estrada do Galeão, que estava com uma placa informando que o equipamento ainda não estava em funcionamento. Mesmo assim, fui multado lá — reclamou o motorista, que dirige desde os 18 anos e se orgulha de nunca ter se envolvido num acidente de trânsito.
Insegurança
A CET-Rio afirmou que, de fato, o número de multas por excesso de velocidade e avanço de sinal durante a pandemia disparou, mas não aponta uma razão para isso ter acontecido. O especialista em legislação de trânsito Armando de Souza disse que é possível que, com a cidade vazia e menos carros nas ruas, as pessoas tenham se sentido mais inseguras e, por medo, pisaram fundo no acelerador e ignoraram os sinais fechados. Mas isso, na opinião dele, justifica apenas em parte o aumento do volume de multas, que ele achou excessivamente alto.
— O que acredito é que as pessoas talvez, até em decorrência da própria pandemia, não se defenderam dessas supostas infrações e, por causa disso, há esse número elevado (de multas). O normal é manter ou diminuir o percentual (de infrações), até porque havia menos carros nas ruas. Não é razoável que tenha aumentado — afirma o especialista, que é vice-presidente da Comissão de Trânsito e Mobilidade do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e também da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Armando de Souza disse que essa insegurança pode ser um “argumento plausível” para o motorista usar no recurso contra a cobrança. Ele observa ainda que o Contran suspendeu a notificação: a multa não podia ser cobrada naquele momento, mas era aplicada.
A aposentada Rosângela Alves Nunes, de 59 anos, reconhece a multa por excesso de velocidade que levou na Rua Itamarati, perto do Morro da Serrinha, em Madureira, mas diz que pisou fundo no acelerador movida pelo medo. A velocidade máxima permitida era de 40km/h e ela passou a mais de 50km/h. Alegou ter desconfiado que estava sendo seguida por dois homens numa moto e reclamou do rigor em áreas consideradas perigosas.
— Andar a 40km/h ali é facilitar a vida dos bandidos. Radares de velocidade em vias secundárias perto de áreas de risco só beneficia os marginais — disse.
O volume de multas registradas este ano caiu. No primeiro semestre, foram 800 mil, o que pode representar uma volta ao patamar de 2019. Mas ainda assim causa indignação entre os motoristas. Sérgio Luiz Rangel, de 53 anos, recebeu sete notificações em casa desde janeiro. Uma delas foi por avanço de sinal na Avenida do Exército, perto do Campo de São Cristóvão, no último dia 11. Um desembolso de R$ 245,37, que ele já pagou, mas vai recorrer. Ontem, esteve num posto da Secretaria municipal de Transportes (SMTR), no Engenho Novo.
— Minha habilitação é de 1989, e nunca havia sido multado. De uma hora para outra fiquei pasmo com a quantidade. Foram sete. Não entendi essa de São Cristóvão. O radar quebrado e o sinal apagado. Esse foi para mim o ano das multas. Até para recorrer é difícil. Já vim três vezes aqui e fui também ao Poupa Tempo. Em vez de facilitar a vida do contribuinte, a prefeitura só complica — se queixou.
O autônomo Leonardo Schuab, de 34, foi multado por um radar na Rua Monsenhor Félix, em Irajá, no dia 26 de maio, mas garante que nesse dia nem tirou o carro da garagem. Detalhe: o motorista mora em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
—Tive dificuldade de fazer o agendamento pelo site para apresentar a defesa, perdi o prazo e acabei pagando. Ficou uma sensação horrível de impotência de pagar por uma infração que não cometi. Além de Irajá ser um bairro que não faz parte do meu trajeto, naquele dia usei transporte público para ir trabalhar em Seropédica e deixei o carro na garagem — garantiu o motorista, cuja multa foi de cerca de R$ 190.
Receita em alta este ano
A arrecadação caiu em 2020, mas o volume voltou a crescer no ano passado (R$ 121 milhões) e já recheou o cofre da prefeitura com R$ 130 milhões neste primeiro semestre. Sobre esses valores, a CET-Rio argumenta que multas represadas podem gerar aumento na receita em momentos diferentes daqueles da sua emissão. De acordo com o órgão municipal, hoje existem 753 equipamentos eletrônicos instalados na cidade, contra os 890 de 2020.
O Instituto de Pesos e Medidas (Ipem) informou que as verificações nos radares ficaram suspensas entre 20 de março de 2020 e 8 de julho de 2021, em função da pandemia. Entretanto, as multas aplicadas por esses equipamentos são válidas, por força de portaria do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), que estendeu os prazos para aferição nesse período.
Porém, na opinião do especialista Armando de Souza, essa prorrogação pode ser usada na contestação de motoristas. Na avaliação dele, a decisão do Inmetro não produz efeito junto aos órgãos fiscalizadores de trânsito, por não legislar sobre o tema:
— É o mesmo que o farmacêutico prorrogar o prazo de validade do remédio — compara, acrescentando que, pelas normas de trânsito, a aferição dos equipamentos deve ser anual.
Fonte: Portal G1