construções para excluir população em situação de rua são criticadas por profissionais


Antes naturalizada na paisagem das grandes cidades, a chamada arquitetura hostil, as intervenções urbanas que servem para afastar, principalmente, a população em situação de rua sofreu um golpe no início do mês. Literalmente. Em São Paulo, o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, deu uma marretada simbólica em uma das pedras colocadas debaixo de um viaduto da Zona Leste, o que gerou uma onda de comoção sobre o tema em todo o país, fazendo com que elas fossem removidas pela prefeitura da metrópole.

O padre Julio Lancellotti retira com uma marreta pedras colocadas sob um viaduto em São Paulo
O padre Julio Lancellotti retira com uma marreta pedras colocadas sob um viaduto em São Paulo Foto: Reprodução / Instagram

Por conta da repercussão do caso, aqui no Rio, o vereador Chico Alencar (PSOL) disse, em seu twitter, que o seu mandato tomará as providências cabíveis para eliminar estes tipos de construção na cidade e para que as pessoas enviem fotos e endereços dos locais onde elas estão. E exemplos cidade afora não faltam. Em Laranjeiras, na Zona Sul, existe um “jardim de pedras” debaixo do Viaduto Engenheiro Noronha, que dá acesso ao Túnel Santa Bárbara, assim como também há em trechos da Avenida Brasil; na lateral do viaduto antes da passarela da Cidade Nova, sentido Centro; na Ponte Lúcio Costa, na Barra; e também do viaduto da Linha Amarela na Freguesia.

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Seguindo pela Rua Pinheiro Machado, a base da passarela que dá acesso à Faculdade Santa Úrsula, ao lado da Praça Chaim Weizmann, em Botafogo, há um gradeamento que parece formar uma jaula. Mesmo assim, pode-se ver baldes, roupas e um colchão em um dos pontos, sinalizando que alguém conseguiu se instalar ali mesmo assim.

Na última terça-feira, o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) divulgou uma nota em que condena este tip ode intervenção urbana no Rio. Copresidente do IAB-RJ, o arquiteto Cláudio Crispim é integrante de um grupo de trabalho sobre arquitetura hostil e observa como esta ação que só empurra o grande problema das grandes cidades — o déficit habitacional que, no Estado, chega a 10% — para debaixo do tapete. Este tipo de construção começou na Europa e logo foi utilizado por aqui desde os meados dos anos 1990, nos lugares públicos próximos de empresas privadas. Assim, foi no Centro em que esse processo começou a se verificar primeiro e que a prefeitura passou a intervir por pressão dessas empresas e, depois, das associações de moradores.

— No começo era mais discreto porque eram grades ou fechamentos verticais pra empurrar essa população para fora das áreas de sombra. Desde então isso tem se diversificado até chegar aos canteiros de pedras como a gente tem visto, virando um lugar estéril, sem vida, assim como individualizando bancos de praças e de ônibus; muretas, grades e chafarizes com grades em formato de lanças para a população de rua não usar aquela água. Esta é uma visão tão anticontemporânea que acaba atacando os próprios pilares da sustentabilidade — disse Cláudio.

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Um censo realizado em parceria pela Secretaria Municipal de Assistência Social com o Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos e a Secretaria Municipal de Saúde revelou, no ano passado, que 7.272 pessoas estavam em situação de rua na cidade, sendo que 5.469 (75,2%) estavam nas ruas e 1.803 (24,8%) em unidades de acolhimento e comunidades terapêuticas da prefeitura. Para o arquiteto, falar sobre arquitetura hostil também passa por falar sobre a visibilização dessa população e como ela se apropria da cidade, tratando a questão de uma forma sistêmica:

— A gente não dava tanta importância a isso, sendo que esses jardins de pedra são hostis para todo mundo. Temos que ver como e o porquê deles ocuparem esses espaços. Assim, essa população em situação de rua pode até contribuir para zelar por esse espaço. A gente sabe que muitas empresas adotam espaços públicos dentro de suas sedes e elas poderiam fazer projetos de captação social para essas pessoas que poderiam, inclusive, subsidiar o custo de suas moradias sociais com este pagamento.

A Prefeitura do Rio informou que a colocação de pedras ou o fechamento de espaços debaixo de viadutos e pontes localizadas próximas a vias urbanas de tráfego intenso foi uma medida encontrada para impedir a ocupação, por grupos de pessoas em situação de rua, em locais considerados de extremo risco à sua integridade, pois, além do risco de atropelamentos, era comum que esses fizessem fogueiras à noite, afetando também as estruturas dos equipamentos.

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Na gestão atual, a Coordenadoria de Drogas da Prefeitura passou a fazer parte da Secretaria Municipal de Assistência Social, o que torna prioritário o trabalho de resgate social dos usuários. Assim, foi montada uma força-tarefa envolvendo a Secretaria Municipal de Saúde, além de Secretaria Municipal de Ordem Pública, Comlurb e Companhia de Engenharia de Tráfego (CET-Rio). Há, no momento, 3.862 vagas disponíveis nos abrigos do município do Rio de Janeiro.

“É importante enfatizar que a legislação só permite o acolhimento daqueles que aceitam. O trabalho dos assistentes sociais é de conversar com essa população e explicar as possibilidades de atendimento, que vão do acolhimento em unidades de reinserção social a encaminhamentos de seus casos para outros órgãos.”, disse a prefeitura, em nota.

Abismo social

Em Niterói, o município com maior Índice de Desenvolvimento Urbano (IDH) do Estado e que também exibe um grande abismo social com suas 40 mil moradias em situação de risco, este tipo de intervenção urbana é naturalizada e disseminada não só para afastar a população de rua, mas também quem se considera indesejável. A análise é da professora do curso de Arquitetura da UFF, a arquiteta e urbanista Regina Bienenstein, que considera estes tipos de construções como “coisas criativas para o mal”:

— Se for para excluir, isso começou quando a classe média começou a se proteger dos “bandidos”, no caso, as classes populares, em seus condomínios fechados, sem contato com a cidade real. É uma forma de se dizer “na minha calçada, não”. O Campo de São Bento, por exemplo, está gradeado há décadas e não se entra nele depois das 19h. Se, antes, teve esse momento das grades, agora estamos indo para além delas.





Fonte: G1