Com mais de um terço dos negócios e dos trabalhadores na informalidade, Rio tenta saídas para estimular mudanças no cenário


RIO — Em tempos nebulosos da pandemia, Adriele Paraguaçu, de 29 anos, enxergou uma brecha para deixar o trabalho com carteira assinada num restaurante do Centro do Rio. Moradora da Favela Pereira da Silva, em Laranjeiras, na Zona Sul, ela uniu a ancestralidade baiana ao prazer de preparar receitas e transformou a cozinha de casa na sede de seu próprio negócio, o Flor de Sal. A clientela de seus pratos, fartos em dendê e outros sabores da Bahia, por enquanto, é majoritariamente da vizinhança, onde faz entregas em domicílio. Mas, do final de 2020 para cá, o sucesso de seu tempero conquistou o paladar de pessoas longe da comunidade. Foi quando a jovem se deparou com a urgência de formalizar seu microempreendimento — e também com as dúvidas e dificuldades que podem surgir nesse processo.

E em vários aspectos, a história de Adriele reflete tantas outras repetidas nos últimos meses, quando a crise do coronavírus abalou o mundo e levou muita gente, por opção ou falta dela, a buscar saídas de renda num trabalho por conta própria.

Panorama e objetivos

Com frequência, esse novo contingente reforça a informalidade que é parte significativa da economia carioca. Titular da Secretaria municipal de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Simplificação (Smdeis), Chicão Bulhões estima que ao menos 40% dos negócios no município sejam informais. Quando se olha para os dados do emprego, a pasta lembra que, no primeiro trimestre de 2021, a taxa de informalidade na capital ficou em 34,4%, numa proporção que reúne os trabalhadores sem carteira de trabalho assinada (14,6%) e os autônomos (trabalhadores por conta própria e empregadores) sem registro de CNPJ (19,8%). Realidade que impacta da arrecadação de impostos à elaboração de políticas sociais. E que tem levado a prefeitura a buscar uma série de iniciativas para não só fomentar a economia formal, como também desburocratizar os caminhos de quem quer legalizar seu empreendimento.

Mariana Dezidério, de 48 anos, e seu marido, Francisco José dos Santos, de 57, vendem quentinhas nas ruas do Catete
Mariana Dezidério, de 48 anos, e seu marido, Francisco José dos Santos, de 57, vendem quentinhas nas ruas do Catete Foto: Maria Isabel Oliveira / Agência O Globo

— O sonho, a meta ousada, é reduzir à metade a informalidade no Rio, que gera vulnerabilidades sociais. É bom para a cidade e para o empreendedor. Mantendo-se informal, ele fica sem acesso, por exemplo, a crédito e a outras vantagens de atividades formais — ressalta Bulhões.

No cerne das ideias está a promoção de acesso amplo e simplificado aos processos e atos de liberação das atividades econômicas. Nesse sentido, uma das apostas, diz o secretário, é o projeto de lei de Liberdade Econômica do Município do Rio, enviado pelo Executivo à Câmara. Uma das principais propostas é eliminar a necessidade de alvará para atividades de baixo impacto, ressalvada a obrigatoriedade de inscrição cadastral junto à Secretaria municipal de Fazenda e Planejamento. Reduzir o tempo e o custo para a abertura de uma empresa também está entre as metas, com o efeito, segundo estudos da Smdeis, de aumentar até R$ 4 mil o PIB per capita da cidade em até dez anos, para R$ 58,4 mil.

Em outra frente, entre as iniciativas para melhorar a ambiência dos negócios, estimular a economia e, consequentemente, gerar empregos formais, Bulhões cita o Licenciamento Integrado (Licin), implantado pela prefeitura, que reduz de 267 para 30 dias o tempo para emissão de uma licença de obra no Rio. Era uma demora, diz ele, que representava um entrave a investimentos na cidade.

Choque de realidade

De volta à rotina das ruas e de quem busca garantir seu ganha-pão, no caso da jovem Adriele, nos últimos meses ela tocava o “restaurante” em casa, com a ajuda de amigos, por exemplo, para receber pedidos pelo WhatsApp. Até que surgiram convites para fornecer quentinhas a empresas. Seria uma chance de decolar se ela já tivesse formalizado o Flor de Sal.

Adriele Paraguaçu, de 29 anos e moradora do Morro Pereira da Silva, em Laranjeiras, é formada em química e trabalhava em restaurantes do Rio. Ela resolveu deixar o emprego formal para ter o próprio negócio, de venda de comida baiana
Adriele Paraguaçu, de 29 anos e moradora do Morro Pereira da Silva, em Laranjeiras, é formada em química e trabalhava em restaurantes do Rio. Ela resolveu deixar o emprego formal para ter o próprio negócio, de venda de comida baiana Foto: Divulgação/Ramon Vellasco

— Eles me pediam notas, que eu não tinha. Numa das mentorias para empreendedores de que participei, conheci uma consultoria que está me auxiliando. Em agosto, fiz a inscrição para me tornar MEI (Microempreendedor Individual) e estou abrindo conta bancária PJ (para empresas). Quem sabe um dia não abro um restaurante no Rio e outro na Bahia — planeja.

A consultoria a que Adriele se juntou é a Multimei, criada este ano pela moradora do Complexo da Maré Jeane dos Santos. Ela trabalhava numa fintech social quando começou a observar as dificuldades de micro e pequenos empreendedores do conjunto de favelas da Zona Norte, com um dinamismo econômico comum também a outras comunidades do Rio. Num posto destinado a esse público na região, ela viu que o atendimento ocorria só uma vez por semana, com número insuficiente de senhas. Muitos, percebeu ela, não sabiam sequer que podiam ter um CNPJ ou obter crédito.

— A própria linguagem das plataformas para a formalização, às vezes, é muito complexa. Eu precisava fazer algo — afirma Jeane, que, com a pandemia, viu uma mudança de perfil dos negócios nas favelas. — Antes, funcionavam só dentro da comunidade, como em ilhas. Com novas plataformas digitais, estão saindo dessa bolha, trabalhando no asfalto, com uma necessidade crescente de formalização. Trabalho, por exemplo, com um serralheiro que está prestando serviços na Barra, onde vai ser exigida dele uma nota fiscal.

Em outra comunidade pujante, a da Rocinha, Gildo Henrique da Silva, de 51 anos, coordenador geral do Mercado Popular local, estima que entre 3 mil e 4 mil pessoas trabalhem informalmente. A perda de empregos durante a pandemia, diz ele, obrigou muitos a se virarem vendendo produtos de porta em porta, pelas redes sociais ou em suas casas. Um fenômeno, afirma, que aumenta a concorrência e amplia as adversidades até para quem, como ele, tem um boxe no mercado popular.

— Hoje, em média, tenho feito R$ 30 de vendas por dia. Estou sobrevivendo com dificuldades — diz Gildo.

Sonhos de empreendedor

O alento é que, segundo o último Boletim Econômico do Rio, divulgado este mês, o mercado de trabalho formal no município, apontam dados do Caged, gerou 22 mil empregos novos em 2021 no acumulado até junho. Mais de 60% deles foram abertos nos meses de maio e junho, mostrando, segundo a Smdeis, recuperação da economia.

Dara Pérez, de 21 anos, é microempreendedora que aposta na produção de doces caseiros
Dara Pérez, de 21 anos, é microempreendedora que aposta na produção de doces caseiros Foto: Maria Isabel Oliveira / Agência O Globo

O problema é que os degraus a subir são muitos. O economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social, ressalta que a informalidade no Rio vinha crescendo desde o período pós-Olimpíada de 2016, num ritmo mais rápido que o do Brasil, se aproximando de cidades como as do Nordeste. A pandemia, diz, teve consequências tão fortes que até postos informais desapareceram:

— E isso foi má notícia, porque funcionava como rede de proteção, da qual as pessoas lançavam mão fazendo bicos, numa espécie de colchão contra a crise.

Por meio do processamento de microdados da Pnad Contínua, do IBGE, ele aponta que o Estado do Rio foi, de todo o país, o que teve a maior queda na taxa de ocupação do último trimestre de 2019 ao último trimestre de 2020 (redução de 14,28%). Entre os que se mantiveram ocupados, o Rio também foi onde mais gente mudou o local em que trabalha durante a pandemia (o que pode incluir também o home office): 19,55%.

O desemprego logo no início do isolamento social de 2020 foi o que empurrou Mariana Dezidério, de 48 anos, para o trabalho nas ruas. Ela era funcionária terceirizada do metrô. Após ser demitida, para pagar as contas, resolveu cozinhar. Passou a fazer quentinhas que vende no Catete, na Zona Sul. Iniciou com 16, hoje são mais de 100 por dia, para o que começa a trabalhar às 3h.

— Sonhar a gente sonha. Fico olhando os pontos (comerciais) pensando um dia em ter um restaurante — diz ela, que também recorreu ao MEI para, ao menos, continuar contribuindo para a Previdência Social.

Entre panelas e o fogão, a jovem Dara Pérez, de 21 anos, toca seu próprio negócio, o Unidoces, dentro de casa, no Catete. Como o nome sugere, ela produz guloseimas que comercializa através de três plataformas de delivery. As dificuldades que encontrou foram tantas que resolveu contá-las nas redes sociais, com as quais muitos seguidores se identificaram. Descobrir que impostos precisava pagar, diz ela, foi só um dos desafios:

— Para fazer meu imposto de renda, chorei dias.

O que ela se questiona agora é como fazer o negócio crescer sendo MEI, com teto (que gera debates em Brasília) de faturamento de R$ 81 mil por ano e a possibilidade de contratar apenas um empregado.

Dinamizar é preciso

Laienny Assumpção, de 25 anos, trabalhava em um shopping, e, há um ano, com uma amiga, abriu sua loja on-line no Instagram. Há dois meses, também com o MEI em mãos, embarcou na ideia da fabricação própria de biquínis, que passou a vender em feirinhas como a do Largo do Machado. Abrir uma loja está nos planos. E ela espera que até lá os trâmites sejam menos burocráticos.

Laienny Assumpção, 25 anos, deixou o trabalho num shopping para vender biquínis de fabricação própria em feirinhas da cidade
Laienny Assumpção, 25 anos, deixou o trabalho num shopping para vender biquínis de fabricação própria em feirinhas da cidade Foto: Maria Isabel Oliveira / Agência O Globo

— Penso lá em cima — diz Laienny, que conta também com a retomada da economia para turbinar ainda mais as vendas.

Mas só eliminar obstáculos da burocracia, destaca o economista Mauro Osorio, diretor da Assessoria Fiscal da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), não basta para alcançar a mudança de rumos necessária. Ele ressalta que impulsionar a economia e aumentar seu dinamismo são movimentos fundamentais para o surgimento de novos negócios e a criação de mais empregos formais.

— Ninguém abre uma loja, por exemplo, porque é mais fácil. Abre porque existe demanda — diz ele.

Osorio ressalta ainda que, apesar da informalidade no Rio, ela ainda fica abaixo da média nacional. No Estado, segundo análise da Assessoria Fiscal, elaborada através dos dados da PNAD Contínua do IBGE, no primeiro trimestre deste ano, 43,11% dos trabalhadores estavam em situação de informalidade. No Brasil, a média era de 45,72%.





Fonte: G1