‘As pessoas, às vezes, passam aqui e olham pra gente como lixo’


Eu estudei até a 4ª série lá em Japeri. Na Escola Municipal Duque de Caxias. Daquele tempo eu não gosto de falar porque eu perdi o meu coroa. A necessidade era ainda pior. Sim, era pior do que catar ossos para ter o que comer. Eu fui pintor, bombeiro, eletricista e entendo um pouco de mecânica. Não lembro quando foi a última vez que eu tive carteira assinada. Estou com 39 anos. Meu nome é Luiz Vander Ferreira da Silva.

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Eu queria mudar a vida da minha esposa, deixá-la melhor. Dar uma casa para ela, sair da rua (eles vivem perto da Praça Paris, na Glória). Ter uma casinha para ela levar os filhos, os netos. Estou com ela desde 2011. Nos conhecemos em Japeri. Lá, tem a casa da mãe dela, onde estão os três filhos dela. Eu tenho quatro. Não lembro a idade dos meus filhos. Às vezes, eu fico triste. Queria dar mais condições de vida para os meus filhos. A gente fica aqui mandando as coisas para as crianças quando dá. Tem dia que a gente tem, tem dia que a gente não tem. Lá (em Japeri), tudo é muito difícil.

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Escolhemos ficar na Glória porque conseguimos as coisas. Conseguimos uma reciclagem, uma lata, um papelão, alguma coisa. Vai ali no caminhão (que transporta ossos descartados por mercados da Zona Sul) e pega uma pelanquinha, salga, manda para casa. Outra parte deixo aqui e faço para geral comer. Quem vive na rua tem uma união, mas não são todos. Aqui não tem uma alimentação certa, e a gente acaba dependendo dos outros. Mas eu não posso só ficar dependendo de ajuda. Eu vou à luta. Tem gente que ajuda, dá comida. Mas tem dia que não tem nada.

Quando eu cheguei aqui, em 2012, tinha gente, mas não isso tudo. Na rua, você tem que saber levar. Tem gente ruim e gente boa. A gente tá dormindo, e pode tomar uma pedrada, uma paulada. A rua é ruim. Na rua, a gente escuta muita coisa. As pessoas, às vezes, passam aqui e olham para a gente como lixo. Tudo é muito difícil.

Caminhão de ossos é a salvação para moradores de rua, como Luis Vander
Caminhão de ossos é a salvação para moradores de rua, como Luis Vander Foto: Agência O Globo

Me sinto bem e mal

Eu não sou herói só porque entro no caminhão da pelanca para ajudar a distribuir. Herói, só Deus. Eu nem sei explicar isso tudo. Não sei falar direito. Ao mesmo tempo, me sinto bem e mal. (Após divulgação da reportagem do jornal Extra sobre pessoas que fazem fila para pegar sobras de ossos num caminhão na Glória), a minha imagem está no Brasil inteiro. Está no telefone, no Facebook, na internet, está rodando. Mas eu não esperava que sairia dessa forma. Entendeu? Eu só penso naquele lá de cima que me ajuda a pegar as minhas pelanquinhas. Eu ajudo qualquer um, o próximo. Eu não sei o dia de amanhã. Eu só espero que Deus me dê vida e saúde para fazer as minhas “correrias” (venda de recicláveis) e ajudar minha família. Eu nem faço oração. Entrego na mão de Deus.

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Sou realista. Só peço que eu consiga uma casa, para levantar com a minha dona, meus filhos e os filhos e os netos dela, oferecer uma dignidade. Porque eles vêm aqui e, daqui a pouco, passa um choque de ordem (operação da prefeitura) e leva os netos dela para o abrigo. E aí? Até a gente correr lá para tirar a criança, é muito difícil. Às vezes, o pessoal da limpeza também passa aqui e, se a gente der mole, eles levam tudo. Mas também tem gente boa, eles conversam e’ não levam nossas coisas.

Hoje eu nem fui pegar pelanca porque eu não tinha sal. Vou pegar lá para chegar aqui e estragar? Então fui ali, peguei umas pelinhas de galinha e estou fazendo. Não pego para jogar fora. Eu deixo aqui as pelinhas fritas e geral vai passar aqui e comer. Eu me sinto grato por ajudar as pessoas. Eu queria ter algo melhor para dar às pessoas da rua. A gente na rua é criticado. Somos mendigos, “cracudos”. É assim que somos vistos. Se eu estivesse com um político, eu só pediria que ele ajudasse os pobres. Olha se isso é certo: você vai ao mercado e paga R$ 30 em cinco quilos de arroz? Tem gente que vai ter e outros que não. Vocês têm condições. E nós? Não. Não tenho dinheiro para comprar o básico”.





Fonte: G1