Na segunda-feira, 4 de julho, a última criança acolhida pela Fundação Romão Duarte deixou o casarão da Rua Paulo VI, 60, no Flamengo. Um ponto final numa história de quase três séculos dedicados a amparar menores abandonados no Rio. O pedido de suspensão de novos acolhidos foi feito pela própria instituição, em 18 de novembro de 2020. De acordo com o Tribunal de Justiça, a organização alegou escassez de recursos financeiros, agravada pela pandemia de Covid-19, da Santa Casa de Misericórdia, provedora do lugar. O imóvel, no entanto, já foi vendido, e um pedido de licença para construção, em nome da Performance Serket Empreendimentos Imobiliários, está sendo analisado por técnicos da Secretaria municipal de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Simplificação (Smdeis).
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A fundação foi contactada por e-mail, mas não se pronunciou. Através do WhatsApp, o assessor de Francisco Horta, presidente da Santa Casa, foi procurado e também não respondeu ao EXTRA.
Dois blocos de apartamentos
De acordo com o projeto, serão implantados no local dois blocos multifamiliares, com apartamentos de até 51 metros quadrados. A proposta mantém o palácio, que deve ser reformado internamente para abrigar 155 pequenas unidades habitacionais, como tem acontecido com outros casarões na cidade. Ao lado dele, a intenção é erguer uma segunda torre, com cinco andares e 78 apartamentos. Outros blocos existentes no terreno devem ser demolidos.
Ainda hoje, a presidente da Associação de Moradores e Amigos do Flamengo (Flama), Leila Maywald, a Leila do Flamengo, encaminhará requerimento à prefeitura solicitando acesso a todos os detalhes do projeto. Leila, que foi vereadora, diz que não é contrária ao aproveitamento habitacional do palacete, desde que haja a garantia de que o imóvel será preservado.
— O Flamengo perdeu muito de seu patrimônio histórico. Não podemos perder mais esse. Precisamos preservar nossa memória. O palácio conta muito da história brasileira. Antes de receber menores abandonados, era usado pelo Conde d’Eu. O palácio da princesa Isabel era na Rua Paissandu, perto dali — conta a ex-vereadora. — Que construam, mas que seja algo de qualidade. Também não queremos que o local, que é vizinho ao Morro Azul, seja invadido e acabe favelizado.
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Por e-mail, a Performance Serket assegura que “o imóvel em questão será preservado, passando por um retrofit, que manterá a construção”.
Embora não conste nas listas de tombamento federal (Iphan), estadual (Inepac) e municipal (Instituto Rio Patrimônio da Humanidade), o palacete guarda preciosidades. É o caso da capela Real de Nossa Senhora das Graças, do período colonial, com adornos em forma de coroas.
Já com endereço no Flamengo — a fundação teve diferentes sedes pela cidade — a Romão Duarte teve uma vizinha famosa que retratou o cotidiano do lugar em obra de arte. Em uma pintura de 1935, Tarsila do Amaral mostra 12 crianças de origens distintas em harmonia de cores e feições. O quadro funciona tal qual um documento histórico do lugar que acolheu crianças preteridas por cerca de três séculos.
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Ainda que tivesse capacidade para atender até 20 crianças, desde abril de 2021 apenas seis estavam no acolhimento institucional do lugar, focado na faixa etária de até 6 anos, segundo o juiz Sandro Pithan, da 1ª Vara da Infância, Juventude e do Idoso. Mas o local chegou a abrigar 300.
A última criança a deixar o lugar já estava com 11 anos. Na última terça-feira, a funcionária Maria Regina, que se identificou como coordenadora, negou o encerramento das atividades e se limitou a dizer que não tinha crianças por lá porque não havia “o devido encaminhamento”. E que, caso houvesse, “estariam prontos para receber”.
O fechamento da unidade agrava um problema crônico na cidade, que teve um aumento de 30% em relação a 2020: o abandono de crianças. De acordo com os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), 288 menores foram abandonados no estado do Rio no ano passado, o que representa um a cada 30 horas. A população mais afetada é justamente a da faixa etária atendida pela Romão Duarte, de 0 a 6 anos, com um índice de 29,36% de abandono.
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Agora, a rede de acolhimento está distribuída entre a Obra do Berço e a Ana Carolina, com condições de atender 20 crianças de até 4 anos, cada; Bia Bedran, que pode acolher 13 menores entre 4 e 8 anos; Lucinha Araujo, que pode receber 20 meninos e meninas de 6 a 12 anos; e o Polo Família Acolhedora (Centro de Referência Especializado de Assistência Social Arlindo Rodrigues), com capacidade para 15 crianças e adolescentes de até 17 anos.
Abandono histórico
O abandono de menores é um traço da cultura luso-brasileira. A historiadora Mary Del Priore lembra que as primeiras crianças negligenciadas chegaram por aqui trazidas pelos padres jesuítas, recolhidas nos portos portugueses para que ajudassem na catequização de indígenas. No século XVIII, com o aumento do abandonado, as autoridades da época pediram a Lisboa que fosse aberta uma Casa de Expostos por aqui.
Casa da Roda, das Enjeitadas ou dos Expostos eram casas de muros altos que comportavam cilindros de madeira, que rodavam tanto para fora quanto para dentro, onde eram depositados recém-nascidos para que fossem ali cuidados. E foi assim que, em 14 de janeiro de 1738, surgiu a Fundação Romão Duarte, que levou o nome do comerciante e filantropo português que possibilitou a abertura do lugar com uma generosa doação, onde os menores eram recebidos, tratados e alimentados.
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Por séculos, mães que não tinham condições de cuidar se seus filhos os deixavam ali. Não apenas mulheres solteiras ou pobres, mas também freiras e integrantes de famílias abastadas, que não tinham a gravidez socialmente aceita. Elas deixavam a criança, tocavam o sino, e alguém da instituição acolhia o novo morador. A roda funcionou até 1938.
— Quando se fala em abandono, se pensa em desamor, em falta de afeto, mas, no caso da Romão Duarte, documentos mostram o contrário — explica Del Priore. — Foi a quebra de uma tradição corrente no Brasil, que era de abandonar aquela criança que não se queria, daí o nome enjeitado, nos lixões da cidade, pelas praias, à beira de rios, para a criança morrer.
Algumas delas, inclusive, eram entregues com enxovais, medalhas de identificação e bilhetes prometendo um retorno em breve. Não era raro dar às crianças nomes exóticos para facilitar a identificação em caso de uma possível volta.
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Escola aberta
No imóvel do Flamengo ainda funciona a Escola municipal Romão de Mattos Duarte, com sete turmas até o 6º ano do ensino fundamental, em turno único. A Secretaria municipal de Educação informa que não há ligação do colégio com o abrigo. A escola fica em uma determinada parte do prédio por um acordo de comodato. Segundo o órgão, as aulas não serão interrompidas. Um funcionário da Performance Serket, por telefone, informou que, quando o empreendimento for licenciado, os alunos serão transferidos para uma unidade próxima.
A prefeitura ainda analisa o pedido de construção feito pela incorporadora, não havendo prazo para a decisão. Um outro processo aberto — o de desmembramento do terreno para que possa comportar dois blocos, com os devidos afastamentos exigidos pela legislação — já foi aprovado pela Smdeis.
Fonte: Portal G1