Já passava das 21h quando um carro estacionou na porta de um centro espírita na Praça Seca, na Zona Oeste do Rio. Três homens encapuzados, com coletes à prova de bala e pistolas, desembarcaram. Eles entraram no imóvel aos gritos de “polícia!” e seguiram até uma salinha atrás do jardim, nos fundos do terreno. Arrombaram a porta, interromperam uma consulta espiritual e atiraram mais de dez vezes em direção ao homem que estava sendo atendido. A cena aconteceu em setembro de 2011 e a vítima, que morreu na hora, era um dos bicheiros mais poderosos do Rio na época, José Luiz de Barros Lopes, o Zé Personal, genro e herdeiro do espólio criminoso do também contraventor Waldemir Paes Garcia, o Maninho, ex-presidente do Salgueiro.
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Na semana seguinte, a polícia já tinha indícios concretos de quem havia sido o mentor do crime: Adriano da Nóbrega, o ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) que virou o matador de aluguel mais temido do Rio. Mas Adriano nunca chegou a responder pela execução. A Delegacia de Homicídios (DH) ignorou as provas que apontavam para a sua participação, e a investigação ficou parada, sem nenhuma diligência, por quase uma década. Atualmente, o inquérito, que teve páginas danificadas por goteiras na delegacia, segue em aberto.
O segundo episódio de Pistoleiros, um podcast original Globoplay produzido pelo GLOBO, vai mostrar como provas que apontavam para a participação de Adriano em vários crimes foram desconsideradas pela polícia e como a impunidade alavancou a fama do ex-capitão como matador de aluguel — e levou à criação do consórcio de matadores que ficou conhecido nacionalmente como Escritório do Crime. Ao longo de cinco capítulos diários, a série — resultado de um trabalho de um ano e meio de apuração — vai revelar histórias inéditas sobre o submundo da pistolagem carioca.
Segurança do jogo do bicho
As provas que incriminavam Adriano pelo homicídio de Zé Personal foram dois depoimentos prestados na semana seguinte ao homicídio. No primeiro deles, uma testemunha próxima de Zé Personal revelou que o bicheiro e o então capitão estavam em guerra. Cinco meses antes do crime, o contraventor havia demitido Adriano — que, na época, ainda não tinha sido expulso da PM e conciliava seu trabalho na corporação com o cargo de chefe da segurança dos pontos de jogo do bicho e máquinas caça-níquel na Zona Sul e na Tijuca. A área era dominada pelo clã Garcia — uma das famílias que controlam o jogo ilegal no Rio —, que à época era chefiado por Zé Personal.
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Adriano, ao longo dos anos 2000, cresceu na hierarquia da família: começou como segurança e acabou virando braço-direito de Zé Personal. Pouco antes da execução, o prestígio na quadrilha era tanto que ele chegou a ser promovido a administrador do Haras Modelo, propriedade do clã em Guapimirim, na Região Metropolitana do Rio. A ascensão de Adriano na quadrilha foi resultado de um banho de sangue: foi nessa época que o capitão começou a matar por encomenda, a mando de Zé Personal.
No entanto, segundo a testemunha contou na DH, pouco antes de ser executado, o bicheiro “percebeu que estavam ocorrendo desvios na fazenda, de gados e medicamentos” e, como Adriano era o administrador, resolveu demiti-lo. Adriano não aceitou a decisão: de acordo com o depoimento, ele voltou à fazenda acompanhado de homens armados para retirar cabeças de gado do local. Na ocasião, o então capitão teria dito aos funcionários que “não deveriam se meter, se quisessem ver seus filhos crescer”.
Goteiras destróem inquérito
Outro depoimento prestado no mesmo mês do homicídio coloca um capanga de Adriano na cena do crime. Uma testemunha ocular — parente que acompanhava o bicheiro na ida ao centro espírita — revelou, na DH, que reconheceu a voz de um dos três criminosos que entraram encapuzados no local: era o PM Luiz Carlos Felipe Martins, o Orelha, homem de confiança de Adriano.
A testemunha ainda acrescentou que Orelha “sempre foi ligado a Adriano, pois foi este quem o colocou para trabalhar” como segurança da família Garcia. O capanga foi morto em março deste ano, dois dias antes da Operação Gárgula, do Ministério Público do Rio, que o prenderia sob a acusação de tentar se desfazer dos bens deixados por seu chefe, Adriano, morto numa operação policial na Bahia em fevereiro de 2020.
Após os depoimentos, nenhuma diligência foi realizada pela Polícia Civil para confirmar ou negar o relato das testemunhas. Nos sete anos seguintes, o inquérito foi encaminhado ao MP e voltou à DH sete vezes. Passou pelas mãos de diferentes delegados e chegou a ter partes destruídas: em 2015, goteiras alagaram a sala do chefe de operações da delegacia e molharam várias páginas. Até hoje, o crime não foi solucionado.
Mortes no Clã Garcia
Em outra investigação de homicídio, havia acusações da própria vítima contra Adriano. É o caso da execução do pecuarista Rogério Mesquita, morto à luz do dia em Ipanema, em janeiro de 2009. Um pistoleiro desceu da garupa de uma moto e deu um tiro na nuca da vítima, em frente à Praça Nossa Senhora da Paz, lotada de babás e crianças. Seis meses antes de ser morto, Mesquita deu um depoimento à Delegacia de Homicídios em que acusou formalmente Adriano de ser autor de uma emboscada que havia sofrido dois meses antes em Cachoeiras de Macacu, na Região Serrana do Rio.
Na ocasião, seu carro foi interceptado numa estrada por outro veículo, de onde saíram atiradores armados que dispararam em sua direção. Mas Mesquita estava acompanhado de um segurança e conseguiu sobreviver. Ao final do depoimento, pediu proteção policial pois se sentia ameaçado pelo capitão. O relato do pecuarista não colocou Adriano na mira dos investigadores: a investigação segue sem conclusão, e ele nunca respondeu pelo crime.
Mesquita também era ligado ao clã Garcia: ele era braço direito de Maninho e, após a morte do capo, virou operador do espólio, o homem que administrava a parte financeira da família. Além disso, Adriano o chamava de “padrinho”, pois o conhecia desde pequeno. Foi pelas mãos de Mesquita que o ex-capitão começou a trabalhar para a contravenção: após a morte de Maninho, o clã se dividiu e entrou em guerra pelo controle de seu espólio criminoso, e o pecuarista, se sentindo ameaçado, foi até a cadeia da PM — onde Adriano esteve preso entre 2004 e 2006 por um homicídio cometido em serviço — contratar o capitão para protegê-lo.
Do presídio, Adriano passou a indicar policiais do Bope para serem seus seguranças. Ganhava uma mesada de R$ 5 mil. A partir de 2006, já solto, o ex-capitão assumiu o serviço. Mas logo, mudaria de lado: Zé Personal, desafeto e adversário de Mesquita pelo espólio, percebeu que Adriano, um policial operacional e letal, poderia ser um aliado poderoso e passou a cooptá-lo. Ofereceu o cargo de chefe dos pontos de caça-níquel, e Adriano, vislumbrando a oportunidade de crescer na hierarquia do bando, aceitou. A partir de então, Mesquita e Adriano romperam, e o “padrinho” virou alvo.
Morte por engano
Toda a trajetória de Adriano no crime foi detalhada à polícia por Mesquita no depoimento que prestou após ser alvo do atentado que antecedeu seu assassinato. No relato, além de dar detalhes sobre o convite ao caveira na cadeia e sobre a mudança de lado, Mesquita também acusou o ex-PM de seis homicídios cometidos a mando de Zé Personal. De acordo com o pecuarista, Adriano tinha um modus operandi para cometer “crimes perfeitos”: “Ele usa um fuzil com a coronha cortada e se coloca no banco de trás do veículo, de forma que posiciona somente o cano da arma para o lado de fora, evitando assim que as cápsulas deflagradas sejam ejetadas para fora do veículo e tirando a materialidade de um confronto de balística”.
Num dos crimes denunciados por Mesquita, Adriano teria matado inocentes, vítimas que não tinham nenhuma relação com a guerra dos Garcia. O capitão teria recebido de Zé Personal a ordem para matar Guaracy Paes Falcão, então vice-presidente do Salgueiro e seu rival por uma parte do espólio. Segundo Mesquita, Adriano tinha um plano: um comparsa ficaria vigiando o momento em que Falcão sairia da quadra da escola de samba num dia de pagode e avisaria o caveira, que deveria perseguir o veículo do desafeto e executá-lo. Em janeiro de 2007, o plano foi seguido à risca, só que o carro interceptado não era o de Guaracy: Adriano e seus comparsas confundiram o veículo na saída do pagode e mataram Rafael Mendes Figueiredo, de 24 anos, e Juliana Roberto Alves, de 25, na Autoestrada Grajaú-Jacarepaguá.
De acordo com o depoimento de Rogério Mesquita, após o crime, ele teria ouvido Zé Personal dizer que Adriano e seus atiradores “fizeram merda, mataram um casal pensando que era o Guaracy, mataram enganado”. Semanas depois, Falcão e sua mulher, Simone Moujarkian, foram executados no Andaraí semanas depois, com o mesmo modus operandi. Apesar do relato de Mesquita apontar para Adriano como autor dos crimes, as quatro mortes também seguem sem esclarecimento. O ex-capitão morreu, em 2020, sem nenhuma condenação por homicídio nas costas.
Fonte: G1