A cada dois dias, uma escola tem aulas suspensas na rede municipal do Rio devido à Covid-19


Desde a retomada do ensino presencial na rede municipal do Rio, em 24 de fevereiro, a Prefeitura do Rio já determinou 195 interdições de escolas devido a casos de Covid-19, quase uma a cada dois dias úteis. Em uma semana, outubro já acumulou sete unidades com as aulas presenciais temporariamente suspensas. Os dados foram enviados ao GLOBO pela Secretaria municipal de Educação (SME) em resposta a um pedido de Lei de Acesso à Informação (LAI).

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Embora endossem a necessidade do ensino presencial para os estudantes, sobretudo os da rede pública, especialistas classificam os números como elevados — principalmente no atual contexto, em que a prefeitura se prepara para um retorno pleno de seus alunos às escolas. Na noite desta quinta-feira, a SME anunciou que o processo se iniciará na rede municipal no dia 18.

— É muito importante manter o estudo dessa garotada, mas precisamos olhar o que está acontecendo. O número de escolas interditadas durante esse período indica que a transmissão não parou. E agora vamos abrir tudo. Isso vai acontecer em quais circunstâncias? Todas as escolas têm condições de garantir uma ventilação adequada, por exemplo? Os alunos serão devidamente testados? — pontua o epidemiologista Diego Xavier, da Fiocruz.

A situação de alguns bairros da Zona Oeste se mostrou particularmente delicada. A 10ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), que abrange locais como Santa Cruz, Paciência e Guaratiba, foi a campeã de interdições do município, com 58 fechamentos. Desses, 39 ocorreram na segunda quinzena de agosto, quando praticamente uma a cada cinco escolas da área — que atualmente tem 188 unidades — estava fechada. Em seguida vem a 7ª CRE, com 28 interdições. Ela contempla locais como Tanque, Taquara, Anil, Cidade de Deus, Jacarepaguá e Barra da Tijuca, também na Zona Oeste.

Caracterizado pelo alastramento da variante Delta, agosto foi disparado o mês com a maior quantidade de escolas fechadas: 103. Em julho, por exemplo, o município teve apenas três interdições. Setembro registrou o segundo maior número de fechamentos (33).

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Uma das unidades atualmente interditadas é a Escola Municipal Noel Nutels, no Tanque, que fechou os portões no último dia 28 depois que o Programa Saúde nas Escolas, que monitora casos de Covid-19 na rede municipal, confirmou três infecções entre alunos de uma mesma turma de 1º ano do Ensino Fundamental. Além dela, ficaram fechadas em outubro outras quatro escolas e mais duas creches, que devem reabrir até a semana que vem (veja o infográfico abaixo).

Foto: Editoria de Arte.

Foto: Editoria de Arte.

A reportagem também pediu o número de casos e mortes por Covid-19 na rede municipal. Em resposta, a Secretaria municipal de Educação (SME), a quem a demanda foi redirecionada pela ouvidoria da prefeitura, disse que esses dados devem ser disponibilizados pela Saúde. Esta, por sua vez, disse, por meio da assessoria de imprensa, que “não conta com o detalhamento de profissão e função dos casos e óbitos de Covid-19”. O GLOBO entrou com recurso no pedido por LAI na terça-feira, e a prefeitura tem 20 dias para responder.

Mistério

A administração municipal tem relutado em disponibilizar números sobre o impacto da Covid-19 nas escolas. Em 23 de agosto, a SME foi questionada sobre um relatório do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Estado do Rio de Janeiro (Sepe-RJ) que contabilizava 16 unidades fechadas. A secretaria confirmou ter interditado escolas para sanitização após a notificação de casos, como orienta o protocolo elaborado pelo comitê científico de enfrentamento à Covid-19 do município (CEEC), mas não informou quantas. Agora já se sabe que o número de unidades fechadas naquele período era ainda maior do que dizia o Sepe.

Naquela ocasião, a SME disse que nunca houve um caso de Covid-19 comprovadamente contraído em alguma de suas unidades. Contudo, desde fevereiro, o protocolo sanitário do CEEC prevê que uma escola pode ser fechada por 14 dias apenas na hipótese do surgimento de “três ou mais casos relacionados entre si”, um evento caracterizado como indício de surto.

Secretário municipal de Educação, Renan Ferreirinha diz que os “casos vinculados” citados no protocolo não necessariamente fazem parte da mesma cadeia de transmissão. Cada um dos infectados pode ter se contaminado isoladamente, mas todos fazem parte do “mesmo grupamento”.

— Há um pequeno fechamento quando há mais três de casos detectados num mesmo grupamento, que pode ser uma sala de aula, uma sala de professores e assim por diante, num mesmo período de 14 dias. Sempre somos mais conservadores quanto a isso — afirma. — Não há comprovação de que essas pessoas se infectaram umas com as outras.

A epidemiologia define como “casos relacionados” pessoas que manifestaram sintomas da doença depois de ter contato próximo, e por tempo suficiente para se infectar, com portadores do vírus em fase de transmissão.

— Nunca será possível dizer onde o aluno se infectou, e essa é a questão com a volta às aulas. A secretaria não pode afirmar que a contaminação aconteceu na escola, mas também não pode afirmar que não aconteceu. E, num caso em que três pessoas se infectam num mesmo período de tempo após ter contato, a probabilidade de a contaminação ter acontecido naquele contato é extremamente alta — afirma Diego Xavier.

Para o epidemiologista, a responsabilidade da SME sobre possíveis surtos no ambiente escolar transcende os muros da escola:

— Parece que eles (a secretaria) querem se isentar do problema, dizendo: “dentro da escola está tudo bem, fora da escola é outra coisa”. Mas não adianta achar que o papel deles acaba na porta da unidade. A comunidade escolar vai muito além do aluno: tem os pais, os motoristas, os funcionários… É preciso orientar todas essas pessoas. Não importa onde a pessoa se infectou, o fato é que se infectou.

Denúncias no 1746

Agosto também trouxe uma explosão de queixas de descumprimentos às regras sanitárias na rede municipal, conforme apontam dados da Secretaria municipal de Governo e Integridade Pública (Segovi). Foram 107 denúncias registradas na Central 1746 naquele mês, o maior número desde maio, que teve 12 queixas. Há relatos de diretores acobertando diagnósticos na equipe, escolas mantendo a atividade mesmo após a identificação de episódios suspeitos de Covid-19 e até de falta d’água para lavar a mão.

Dos 10 bairros com o maior número de reclamações no acumulado histórico, sete são da Zona Oeste. A liderança é de Guaratiba, um dos bairros de menor renda média do município. Na sequência aparecem ainda Campo Grande e Paciência.

Segundo o epidemiologista Marcelo Gomes, também da Fiocruz, os números podem ser um reflexo da desigualdade social. Afinal, um dos maiores fatores de defesa individual contra o vírus, a qualidade da proteção facial, está diretamente relacionada à oportunidade de acesso à informação e ao nível de poder aquisitivo. Em abril, a SME anunciou a distribuição de máscaras PFF2/N95 para todos os seus funcionários, mas em junho ainda havia quem dissesse não ter recebido o item.

— Quando falamos de máscaras de boa qualidade, por exemplo, existe uma discussão em torno da desigualdade. Em se tratando do ensino público, que envolve famílias com uma realidade financeira específica, o investimento público para a oferta e distribuição de máscaras PFF2 traria um impacto positivo muito grande — diz Marcelo.

Ele também frisa a importância de readaptar as salas para que sejam arejadas e ventiladas o bastante, pois a transmissão pelo ar é o principal mecanismo de contágio do vírus. A reportagem localizou 13 reclamações sobre o tema nos arquivos do 1746, das quais duas foram dadas como “não constatadas” após inspeção das autoridades e as restantes foram “fechadas com solução”, de acordo com planilha interna da Segovi.

A SME atribui o número de escolas fechadas na Zona Oeste à grande extensão da área. A 10ª CRE, por exemplo, tem a maior quantidade de alunos de todas as CREs: 95 mil. As demais têm, em média, 54 mil estudantes. Para Ferreirinha, essa diferença justifica o maior número de interdições ocorridas ali.

As estatísticas, contudo, não mostram essa proporcionalidade. A 10ª CRE tem uma razão de 6 escolas fechadas ao longo do ano para cada 10 mil alunos, enquanto a média da cidade é de 2,7. Ainda na Zona Oeste, a 7ª CRE tem o segundo maior número de estudantes da cidade e a terceira maior taxa de interdições: 3,1 por 10 mil alunos.

Desigualdade

Área com bairros mais abastados, como Copacabana, Flamengo, Jardim Botânico e Tijuca, a 2ª CRE também tem uma taxa mais alta que a média: 3,14. A região abriga, contudo, locais mais vulneráveis economicamente e com mais habitantes por metro quadrado, como a Rocinha e o Vidigal.

O perfil social de uma região pode impactar a velocidade do contágio do vírus, a possibilidade da oferta de um tratamento adequado e até mesmo as chances de acesso a um teste, necessário para a confirmação de um caso. Ex-secretária municipal de Educação do Rio, Claudia Costin, também relaciona o contexto econômico de cada região à diferença entre as CREs no total de interdições a escolas.

— Manter distanciamento social na Rocinha é bem mais difícil do que manter distanciamento social em Ipanema, e isso pode se refletir na procura a unidades de saúde e também nas escolas. Há um cenário de desigualdade social profunda, que torna as condições de respeito aos protocolos mais difíceis em determinados lugares — pontua.

A Secretaria municipal de Saúde — que, pelo protocolo sanitário do município, também participa da decisão de fechar ou não uma escola — diz que um maior número de unidades interditadas não necessariamente significa um número maior de alunos ou professores infectados.

— A interdição de uma escola é uma medida preventiva que tem a finalidade de evitar surtos — afirma Daniel Soranz, titular da pasta. — Temos um protocolo sanitário rigoroso, que consideramos um sucesso, sem negacionismo. E sempre somos mais conservadores que o protocolo.

Vice-presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, Tarcísio Motta (PSOL) diz ter recebido em seu gabinete um total de 428 relatos de casos de Covid-19 nas escolas municipais. Desses, 258 foram confirmados por teste. A CRE com mais denúncias de descumprimento a protocolos é justamente a 10ª, onde 32 das 188 escolas foram citadas.

Segundo o gabinete do vereador, os relatos dão conta de salas sem ventilação adequada, ambientes lotados, casos suspeitos que não são testados e demora para afastar turmas e suspender aulas diante de confirmações.

Futuro

Ferreirinha nega que haja descumprimentos ao protocolo e lembra que as interdições se concentraram em agosto, refletindo uma tendência de toda a cidade, cujos indicadores foram alavancados à época pela variante Delta.

— Agora os números estão caindo, e temos um cenário favorável pela frente, o que nos permite planejar o retorno ao 100% presencial — diz.

O protocolo sanitário municipal, um documento de 32 páginas, já recebeu sete atualizações ao longo do ano, sendo a mais recente uma edição publicada nesta quinta-feira, que acolhe as novas decisões do comitê científico. A nova edição, contudo, não trouxe alterações quanto ao critério de fechamento de uma escola.

Ela também não propôs mudanças na estratégia de testagem adotada pelo município atualmente. Segundo o protocolo, o membro da comunidade escolar deve ser testado após apresentar sintomas ou “quando for necessário”. Em caso de confirmação, é preciso manter isolamento por 14 dias. Todas as pessoas que tiveram contato com a pessoa que teve diagnóstico confirmado, os chamados contactantes, também devem fazê-lo.

No protocolo, a SMS desaconselha testagem rotineira para todos os contactantes, “uma vez que há período variável de incubação e o teste negativo não exclui que a pessoa venha a desenvolver a infecção”. No entanto, segundo especialistas consultados pela reportagem, o exame periódico não só dos contactantes, mas de toda a comunidade escolar, é importante para mensurar a circulação do vírus e, com isso, prevenir transtornos maiores. Afinal, muitas vezes as crianças não apresentam sintomas da doença e mesmo assim a transmitem para pessoas mais velhas, mais suscetíveis.

— Sabemos que é caro testar todo mundo, mas hoje já existem técnicas de testagem em pool, por exemplo. Em vez de realizar um teste para cada aluno, você realiza o exame de uma só amostra a partir do material coletado de vários alunos. Nesse caso, não importa quem está infectado, e sim se há algum infectado naquela turma ou naquela escola — diz Marcelo Gomes.

Ainda de acordo com o protocolo, se houver um caso positivo numa determinda turma, seja num aluno ou num professor, todos devem ficar em isolamento por 14 dias. O documento ainda estabelece boas práticas a serem adotadas no transporte para a aula e na comunicação com os responsáveis, incluindo a capacitação de professores nesses assuntos. O que importa, dizem especialistas, é cumprir as regras.

— É importante frisar que a pandemia não acabou. Se não houver uma reabertura cautelosa e adequada, o vírus continua a circular, e em breve poderemos ter uma nova variante que quebre o bloqueio das vacinas. E todo esse esforço pelo ensino dessas crianças pode ir por água abaixo — afirma Diego Xavier.





Fonte: G1