Em meio ao endurecimento das regras para a participação de mulheres transgênero no esporte, uma controversa iniciativa na World Athletics para verificar o sexo biológico das atletas tem sido alvo de críticas.
Sob a alegação de busca por justiça na categoria feminina, a federação internacional de atletismo anunciou no fim de março que exigirá que todas as atletas se submetam a um teste de saliva para determinar se estão aptas a competir entre as mulheres.
“Sentimos que esta é uma maneira de fornecer confiança e manter o foco na integridade da competição”, declarou Sebastian Coe, presidente da World Athletics. “Nunca teríamos optado por isso se não fosse para proteger a categoria feminina.”
Em 2023, a federação já havia vetado a participação nas competições femininas de atletas trans que tenham passado pela puberdade masculina —a etapa costuma se iniciar por volta dos 12 anos.
Com a nova investida, a World Athletics aperta o cerco também às atletas com DDS (Distúrbios de Diferenciação Sexual), termo usado para descrever o grupo de mulheres que, devido a mutações genéticas, têm alterações no desenvolvimento típico dos caracteres sexuais, mas não são trans.
Em determinadas situações, elas podem ter testículos rudimentares internos e o cromossomo Y marcado nos genes —que determina o sexo biológico como masculino—, ocasionando em maior produção de testosterona, embora possam ser imunes aos efeitos do hormônio.
A iniciativa remonta a práticas de meados dos anos 1960, quando as entidades esportivas passaram a adotar testes de verificação compulsórios.
O primeiro e mais polêmico método foi visto no Europeu de atletismo de 1966, em Budapeste. Ele consistia em enfileirar as atletas nuas para que passassem por exames conduzidos por uma banca médica.
Diante das críticas ao método invasivo, passou-se a exigir nos Jogos do México, dois anos depois, teste microscópico, via esfregaço bucal, para verificar se as mulheres tinham em seus genes o cromossomo Y.
A exigência caiu apenas no fim dos anos 1990, quando os testes foram restritos a casos de suspeita ou denúncia de fraude.
Médico endocrinologista, professor titular da Faculdade de Medicina da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e consultor da ABCD (Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem), Rogério Friedman explicou que o teste de saliva da World Athletics não difere muito do adotado há cerca de 60 anos.
Ele basicamente coleta as células das atletas para verificar a existência do gene SRY (Sex-Determining Region of Y Chromossome). “Esse gene marca a presença do cromossomo Y, que estabelece o sexo biológico como masculino.”
O método para a identificação do gene é o PCR (Polymerase Chain Reaction), o mesmo utilizado nos testes de Covid-19. Ele permite, a partir da amostra em contato com reagentes químicos, identificar sequências de DNA ou genes avulsos.
Segundo Carolina Barros, bióloga e mestre pelo PIEC/USP (Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências da Universidade de São Paulo), entre as situações enquadradas como DDS, há mulheres com o gene SRY cujos corpos são imunes à produção de testosterona.
“Pode acontecer de a pessoa ter o gene SRY, mas não estar ativado. Então, as características genéticas expressas no corpo físico vão ser aquelas mais relacionadas com o corpo feminino.”
A espanhola María José Martínez Patiño foi um dos primeiros casos conhecidos a respeito. Em 1985, então com 24 anos, ela foi impedida de competir nos 100 m com barreiras nos Jogos Universitários Mundiais, no Japão, ao ser reprovada no teste de elegibilidade. Exames indicaram a presença do cromossomo Y.
Na ocasião, ela se disse surpresa com o diagnóstico. Relatou ter passado por inúmeros exames ginecológicos, possuía vagina e mamas e se considerava –e sempre fora percebida como– mulher.
Após uma série de investigações médicas, a conclusão foi que ela era intersexo (termo usado anteriormente para referir-se a pessoas com DDS) e não possuía sensibilidade à testosterona. Em 1988, teve seu retorno às competições na categoria feminina autorizado.
Professora da Faculdade das Ciências da Educação e do Esporte na Universidade de Vigo, na Espanha, Patiño criticou o anúncio da World Athletics.
“O que estão fazendo, na minha opinião, é prejudicar as novas gerações que talvez nunca serão atletas, mas às quais, com esta normativa, estão dizendo: ‘Embora seu desenvolvimento seja o de uma mulher, você na realidade é um homem'”, afirmou Patiño, em entrevista ao El País.
“A primeira coisa que eles têm que fazer é diferenciar entre mulheres trans e DDS para evitar causar qualquer dano comparativo. Uma coisa é a escolha pessoal, à qual todas temos o direito, e outra uma questão médico-genética, e com estas normativas não fazem diferenciação.”
Pesquisadora trans de medicina esportiva na MMU (Universidade Metropolitana de Manchester), Blair Hamilton disse em publicação nas redes sociais que a proposta da World Athletics “não é justificada, ética ou viável”.
Coautora do artigo “Critérios de elegibilidade justos e seguros para o esporte feminino”, Hamilton defende que não existem evidências “que demonstrem vantagem no desempenho atlético para justificar testes e regulamentação de uma população inteira de competidores”.
Em nota enviada à Folha, a World Athletics afirmou que o teste do gene SRY “é de triagem, não um teste de decisão final”.
Segundo a entidade, quadros de DDS ainda serão elegíveis para competir na categoria feminina, com a previsão de um teste de sangue seco para aferição da testosterona. Considerado pouco invasivo, o teste é realizado a partir de uma pequena amostra de sangue, que passa por análise após secagem.
“Atletas com teste SRY positivo têm a possibilidade de demonstrar que possuem insensibilidade completa aos andrógenos, e a World Athletics pode auxiliá-las nesse processo.”
Às atletas com DDS, a federação estabelece em sua política limite de testosterona abaixo de 2,5 nmol/L por 24 meses antes da competição, considerado compatível com a média na categoria feminina.
O caso mais emblemático na modalidade é o da sul-africana Caster Semenya, bicampeã olímpica nos 800 m, com triunfos em Londres, em 2012, e no Rio de Janeiro, em 2016.
Seu quadro é classificado como hiperandrogenismo, um tipo de distúrbio endócrino que gera produção de testosterona acima da média.
Em 2019, nova política da World Athletics determinou que corredoras com o quadro de Semenya se submetessem a tratamento hormonal para reduzir a testosterona se quisessem continuar participando de provas entre 400 m e 1.600 m. Distâncias em que, na avaliação da federação, poderiam levar vantagem.
A recomendação foi rejeitada pela atleta, que disse sofrer discriminação da federação. Ela acabou impedida de competir nas distâncias.
Semenya passou então a correr nos 5.000 m e foi campeã sul-africana. Em 2022, participou do Mundial de Eugene, nos Estados Unidos, terminando fora das finais, na 13ª posição.
Linha do tempo da verificação do sexo biológico das atletas
1966
Enfileiradas e nuas, atletas passavam por exame conduzido por banca médica, em prática que começou de forma compulsória no Europeu de atletismo, em Budapeste.
1968
Exame microscópico é adotado a partir dos Jogos na Cidade do México, com a busca pelo cromossomo Y.
1999
Testes deixam de ser compulsórios, restritos a partir de então a casos de suspeita ou denúncia de fraude.
2025
World Athletics anuncia teste de saliva para verificar sexo biológico de todas as atletas da modalidade.
Folha de S.Paulo