Ao celebrar a vitória do Brasil sobre a Inglaterra na Copa do Mundo de 1962, em texto publicado na revista Manchete, Nelson Rodrigues apontou que “não tínhamos rainhas, nem Câmara de Comuns, nem lordes Nelsons”. “Mas tínhamos Garrincha. E tínhamos Zagallo, o de canelas finíssimas e espectrais”, observou o cronista, antes de concluir: “E Nilton Santos, com sua salubérrima eternidade”.
Era uma referência à idade do lateral esquerdo, cuja convocação aos 37 anos havia sido bastante contestada. O carioca da Ilha do Governador quase recusou o chamado, mas foi convencido a disputar seu quarto Mundial, embarcou ao Chile e teve participação importante na conquista do bi.
Faz tempo.
Mas Nilton Santos, nascido em 16 de maio de 1925, é raro caso de memória bem preservada do futebol brasileiro. Ainda que tenha jogado em uma época de poucas imagens gravadas, é quase uma escolha unânime nas seleções mundiais de todos os tempos –está, por exemplo, na divulgada pela Fifa (Federação Internacional de Futebol) em 1998.
Nesta semana de centenário, tem recebido homenagens do Botafogo, clube pelo qual atuou em toda a carreira, e de seus torcedores. O próprio estádio usado pelo clube, construído no Engenho de Dentro, na zona norte do Rio de Janeiro, para os Jogos Pan-Americanos de 2007, passou em 2017 a ser chamado de Estádio Olímpico Nilton Santos. Sua estátua, no setor leste, virou ponto turístico.
Não faltam craques na história do clube alvinegro, uma lista com nomes como Manga, Quarentinha, Didi, Garrincha e Heleno de Freitas. Mas o texto no qual a agremiação divulgou as celebrações dos cem anos de Nilton apontou, sem o risco de cometer exagero, que ele é o “ídolo de maior identificação com o Botafogo de Futebol e Regatas”.
Santos defendeu o Botafogo de Futebol e Regatas de 1948 a 1964. Foram 723 partidas, até hoje o recorde do time, com quatro títulos do Campeonato Carioca e dois do Torneio Rio-São Paulo. Na seleção, triunfou nas Copas do Mundo de 1958 e 1962.
Cumpriu-se a profecia de Carlito Rocha, folclórico dirigente do Botafogo, que viu da arquibancada de General Severiano os testes de Nilton. “Você tem físico de defesa. Esqueça o ataque, rapaz. Na defesa, você será campeão carioca, brasileiro, sul-americano e mundial”, disse Carlito, segundo relato de Nilton.
A profecia, a bem da verdade, foi só parcialmente cumprida. Santos ganhou tudo, de fato. Mas não esqueceu o ataque. Herdeiro de Domingos da Guia, tornou-se um defensor com enorme apreço à bola e nunca foi afeito a chutões.
“Sou amigo de infância de todas as bolas deste mundo”, afirmou, em 1962, ao cronista Armando Nogueira, de quem era próximo. Para Armando, ele “tinha o dom de aveludar a bola quase sempre áspera que ronda uma pequena área” e ousava “ir à frente, com galas de atacante”, cometendo “essa doce imprudência com a espontaneidade dos gênios da bola”.
Ponta-esquerda nas peladas em sua Ilha do Governador, Nilton Santos atuou em várias posições. Destro, foi à Copa do Mundo de 1950 como reserva do viril Augusto na lateral direita e nunca perdoou o treinador –em sua biografia “Minha Bola, Minha Vida” (1998), chegou a dizer que o Maracanazo fez bem ao Brasil, pois, “com a derrota, caiu junto um mito de uma etapa do futebol brasileiro: Flávio Costa”.
Nilton terminou a carreira como quarto-zagueiro, mas foi mesmo na lateral esquerda que construiu seu nome. Não esqueceu o ataque e quebrou um paradigma ao tornar-se um lateral que se atrevia a cruzar a linha do meio do campo.
Ficou para a história o lance do segundo gol do Brasil na vitória por 3 a 0 sobre a Áustria, na Copa de 1958. “Lembro até hoje”, disse Zagallo, em 2013, por ocasião da morte de Santos, aos 88 anos, em decorrência de uma pneumonia agravada por doença de Alzheimer e por insuficiência cardíaca.
“Ele arrancou para o ataque, e eu gritei: ‘Vai em frente que eu fico no seu lugar’. O nosso técnico [Vicente Feola] se desesperou, mas acabou aplaudindo quando o Nilton surpreendeu toda a defesa adversária e fez o gol. A partir dali, os laterais nunca mais jogaram do mesmo jeito”, recordou Zagallo, ponta-esquerda no primeiro time do Brasil campeão do mundo.
Esse é um dos episódios marcantes, alguns mais folclóricos do que outros. Há o treino no qual, humilhado pelo habilidoso jovem que fazia teste, Garrincha, aconselhou o Botafogo a contratá-lo. Há a malandragem da Copa de 1962, no jogo contra a Espanha, com um passinho para fora da área para que o juiz desse falta, não pênalti, para o adversário.
Há também o jogo Botafogo x River Plate, no qual Garrincha castigava o lateral Federico Vairo, com dribles desconcertantes. O centromédio Néstor Rossi, do River, reza a lenda, recomendou ao companheiro, no intervalo, que tocasse as pernas de Nilton: “Vai lá, anda, que o futebol de todos os beques do mundo está ali, naquelas pernas”.
É difícil acreditar que o diálogo tenha se desenrolado nesses termos, mas Nilton Santos era a Enciclopédia do Futebol –apelido para o qual surgiram vários pais, em versões conflitantes, mas que foi difundido pelo radialista Waldir Amaral. E nem o “futebol de todos os beques do mundo” o fez rico. Nilton se habituou a assinar contratos em branco com o Botafogo, aceitando o valor que o clube estivesse disposto a pagar.
“Sempre fui um profissional com espírito de amador”, afirmava, com genuína simplicidade, o carioca, capaz de vestir a camisa do Corinthians em apoio ao amigo Garrincha, que tentava a sorte no alvinegro do Parque São Jorge, já no fim da carreira, em 1966. “É até uma honra. O Corinthians é dos grandes e agora tem meu amigo Mané. Esta camisa é bonita mesmo, hein, Mané?”, brincou.
Foi também com simplicidade que desfilou na Vila Isabel, em 2002, homenageado no enredo “O Glorioso Nilton Santos – Sua Bola, Sua Vida, Nossa Vila”. Frequentador da União da Ilha, chamou o tributo da Vila de maior emoção de sua vida.
O boa-praça Nilton era querido também pelos rivais e defendido nas raras ocasiões em que perdia a calma. Quando ele foi suspenso por um tapa dado no árbitro Armando Marques, em 1964, uma das vozes que se levantaram em sua defesa foi a do tricolor Nelson Rodrigues.
“Não ocorreu a ninguém que um tapa pode ter a sua ética profunda. Nilton Santos bateu por quê? Sim, por quê?”, escreveu Nelson, em sua coluna no jornal O Globo, argumentando que Armando “espetou-lhe o dedo na cara”.
“Eis o problema: – um juiz pode agredir um jogador não pode revidar?”, prosseguiu o cronista. “E, afinal de contas, o jogador que se portou como homem – e por isso mesmo – teria de ser desagravado, promovido, premiado. Um jogador não pode ser, nunca, a antipessoa.”
Nilton Santos nunca foi a antipessoa. E, no centenário de seu nascimento, reverenciado por botafoguenses e não botafoguenses, brasileiros e não brasileiros, exibe o frescor de sua salubérrima eternidade.
Folha de S.Paulo