Cesse tudo o que a musa antiga canta. Desde a minha estreia neste glorioso espaço, o que parece ter acontecido na era cenozoica, bato na tecla de que baixar quatro ou cinco segundos por quilômetro no ritmo de corrida não faz diferença na vida de um amador, ao menos não a ponto de justificar o desembolso de dois paus num tênis de durabilidade limitada.
Sou, ou talvez já não seja, um crítico dessa sangria desatada pela “responsividade”, propriedade que é o atual abracadabra das marcas esportivas e que, se ajudou um par de quenianos a quebrar a barreira das duas horas na maratona, não vai inscrever a nós, amadores, no Panteão Velocista da Humanidade.
Baixar em dois minutos o tempo da meia, em cinco o da maratona, não deverá, ou não deveria, ser nosso legado para a posteridade.
Mas o diabo é que a diferença é notável, pode bem ser maior do que essas, e o resultado de uma experiência recente me deixou ligadão. Na meia-maratona de Florianópolis, que corri no domingo passado (4) a convite da Fila Brasil, que me equipou com seu recém-lançado Carbon 3, fiz tempos históricos.
Nos 16 quilômetros em que o Strava esteve vivaz no meu alquebrado celular, 11 deles foram de passagens iguais ou abaixo de 4min32, com direito a um 4min18 e a quatro rodagens de 4min25. A distorção natural do Strava não é uma variável a ser considerada, pois cotejo esses registros com outros feitos pelo mesmo aplicativo.
Se corri algum 4min18 na vida, foi na pista de atletismo do clube da USP, o Cepê, com intenção expressa de parar assim que finalizasse as duas voltas e meia que perfazem o modesto quilômetro.
Mas fiquei cabreiro, achando que meu desempenho estelar pudesse ter sido influenciado por outros fatores. Temperatura: os 17 ou 18 graus de média certamente ajudaram na performance, mas estavam longe de ser uma novidade. Altitude zero: quem nunca correu à beira-mar? Não sou exceção. Mandingas de véspera: a garrafa e meia de carménère chileno derrubada no começo da noite talvez tenha menos álcool acumulado do que as duas doses de aguardente que tão preciosamente abrem os trabalhos da incontornável feijoada do almoço de sábado.
E, quanto à feijoada, ela não houve, mas isso já havia acontecido em julho passado, às vésperas de minha última maratona, em São Paulo.
Evidências, contudo, não são exatamente provas, e decidi levar o Carbon 3 para trabalhar na pista da USP. Sabia, por conta de minhas aulas anuais de biatlo, que jamais rodara aqueles 400 metros a menos de 1min45, e procurei emular o esforço intenso daqueles dias. Pois bem, não foi difícil rodar dez segundos mais rápido.
Todo este relato pode parecer estéril para quem, num mundo intensamente capitalista, acredita na sinceridade dos discursos publicitários das marcas, as esportivas incluídas. Eu levei um bom tempo para me perceber envolvido, mais um fetichista entre fetichistas, pelo maldito tênis de placa. Vou querê-lo em algumas provas no asfalto –a responsividade, você deve imaginar, desaparece na terra e em outros pisos macios.
Começo a achar que o pixo exigido para o produto –R$ 1.499 no caso do supracitado no ecommerce da Fila– é o dinheiro da pinga. Do carménère, digo.
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Folha de S.Paulo