Ironman, o Fla x Flu do esporte amador brasileiro – 29/05/2025 – No Corre


Se o Fla x Flu tivesse mesmo a transcendência imaginada por Nelson Rodrigues; se o Corinthians x Palmeiras contivesse a dramaticidade sublinhada por Ugo Giorgetti; enfim, caso esses clássicos fossem da maneira como a arte os retratou, daria para dizer que o Ironman “full”, que acontece neste domingo (1°), em Florianópolis, é o Fla x Flu, o derby do esporte amador brasileiro.

Forço a mão, claro, dado que o universo do triatlo, e sua prova anual mais emblemática, dizem respeito a quase ninguém. Não apenas a inscrição do Iron é uma bala –nesta edição, a partir de R$ 4.179 (ou US$ 759 para os gringos)—, como é preciso investir em bicicleta, roupa, treinamento.

Mais: há que separar algumas boas horas semanais, 14 é um número conservador, para nadar, correr e pedalar. Na prova do Ironman full, chovo no molhado, é preciso nadar 3,8 km, pedalar 180 km e fechar com uma maratona inteira –42,2 km de corrida.

O mais louco é que há gente como a gente que chega lá. Dei com um ex-sedentário e ex-obeso que jamais nadou na vida até outro dia e que, após completar diversas provas de triatlo, pretende celebrar seus 50 anos na “full”; com uma economista que começou a correr tardiamente e que agora, mãe e com uma rotina dura no mercado financeiro, retomou o velho sonho de adolescência, quando era fã da triatleta pioneira Fernanda Keller. Há mais exemplos.

A prova deste domingo está cheia de ex-campeões do Ironman Brasil entre os 35 homens e mulheres do “start list”, a “elite” da competição. E a rivalidade entre Brasil e Argentina, tão simbólica no futebol, aqui também comparece. A Argentina lidera a estatística, com dez vencedores; o Brasil, junto com os Estados Unidos, tem nove, incluídos os campeões atuais, Reinaldo Colucci e Pâmella Oliveira.

Todos disputam a prova, assim como o último campeão argentino, de 2023, Luciano Taccone. Pâmella luta pelo tetracampeonato, o que dá uma ideia da eletricidade que envolve o evento.

Mas o que justifica a comparação com o Fla x Flu não é a participação na prova desses campeões, nem de seus principais adversários, mas a dos tiozinhos e tiazinhas que alinham entre os amadores. Que enfrentaram perrengues pesados, não apenas no dia a dia de treinamento mas em desafios pregressos.

Não são poucos os que travaram logo na primeira modalidade, a natação, que tiverem ataques de pânico ao não ver nada semelhante com os azulejos da piscina na água turva do mar ou no breu total da represa; que caíram da bicicleta ao tentar beber água; que já não tinham forças para correr mais um quilômetro.

Disse recentemente que ninguém vira guerreiro por disputar uma prova longa, e mantenho o argumento. Participar do Iron é mais um fetiche, da mesma natureza, repito, de colecionar vinhos ou “ticar” pontos turísticos pelo mundo. Todos os inscritos, até onde se sabe, alistaram-se para a competição voluntariamente.

A transcendência da coisa está, talvez, em certo desejo de controlar as forças descomunais da natureza, algo que poderia ser tentado solitariamente e de outras maneiras, mas que o Ironman, a seu modo, também simboliza.

E controlar a natureza, uma tarefa paradoxalmente iluminista, está forjada no inconsciente coletivo da humanidade há uns bons 40 minutos antes do nada.

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Folha de S.Paulo