Impacto da corrida sobre a alma pode ser profundo – 19/09/2024 – No Corre


Muita gente começa a correr por razões que dizem respeito ao corpo: perder peso, ganhar condicionamento e resistência. Muito fácil de ser praticada, a corrida é excelente para forjar a partir do zero uma rotina de atividade física. E sendo tiro certo para criar hábito, é antídoto de efeito rápido contra o sedentarismo.

Dito isso, é a alma que sai mais impactada. Alegria é um produto imediato, costuma vir já durante o treino. A disposição e o bem-estar são duradouros, permanecem ao longo do dia, especialmente se o cascalho é pela manhã.

A autoestima cresce com o tempo e prescinde das provas, ainda que pouca gente abdique dessas verdadeiras festas, sempre aos fins de semana, que criam expectativa à medida que se aproximam e, ao final de tudo, ainda deixam no corredor uma medalha —e um domingo alto-astral inteiro pela frente.

Há ainda um lado social forte, mas isso outras atividades físicas também proporcionam. Experimente, de qualquer forma: correr conversando por uma hora, quem sabe mais, é como ir a uma “movida”, andar por bares e bares, mas sem beber uma gota de álcool e tendo prazer similar.

Alguns treinadores de assessorias esportivas badaladas ainda destacam um lado mais planejador, como se o cumprimento judicioso do ciclo canônico de treino para uma prova longa como a maratona ou o triatlo desse ao esportista capacidade de organização e de entendimento de prioridades –duas habilidades exigidas no mundo corporativo.

Mas como eu sou anticanônico, relevemos esse argumento tão usado pelo… cânone.

Para mim, a corrida serve para outra coisa: proporcionar bons momentos de introspecção e de eventual autoanálise. A endorfina talvez “vicie” o resultado e o alcance dessa introspecção, que são muito diferentes daqueles produzidos na ioga, por exemplo.

Na ioga, ou na meditação, que dá na mesma, a prática visa controlar o fluxo do pensamento. No começo das sessões, os boletos, a agenda, o jogo da Portuguesa e a programação do Sesc dominam, mas depois você começa a domar o jorro de estímulos mantendo foco na respiração. Ioga é genial.

Na corrida, essa história de foco de que talvez te falem é pura conversa fiada. Aqui o fluxo de pensamento é bem-vindo, em nada vai atrapalhar na “concentração”. Ao correr, você não fica a pensar na respiração, na pisada ou no movimento dos braços. Os gestos são naturais. Quando muito, pensa-se no ritmo.

Não que as ideias sejam tremendas, verdadeiros “momentos eureca”. Nenhum corredor vai trazer o primeiro prêmio Nobel para o Brasil, tampouco ganhar um tiquinho de capacidade abstracional para enfrentar os filhos no xadrez.

Mas dá para imaginar uma nova reportagem, lembrar de alguém há muito distante, pensar numa maneira de se relacionar sem altercação com a parte bolsonarista da família.

O que eu jamais consegui com tantos anos de cascalho foi colocar as percepções que tenho, e que me parecem dignas de, não ria, um Henry James, num texto minimamente elegante, como faria com o pé nas costas o escritor anglo-americano.

Porque um dia eu queria fazer com que Daisy Miller, digamos, “não” pensasse na eficácia e na amplitude do sistema de bibliotecas paulistanas; na dificuldade de se distinguir os muitos tipos de câmbio Shimano; na resistência das pitangueiras em São Paulo, a frutificar a cada primavera; na dona Natália escrevendo em bordas de envelope as receitas da Ofélia.

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Folha de S.Paulo