Eu não queria começar minha primeira coluna na Folha de S.Paulo com um clichê, mas os clichês estão aí porque fazem sentido. Então lá vai: “Brasileiro gosta de fila. E gosta ainda mais de furar fila”.
Depois de dez anos vivendo na Espanha, vi como a burocracia ibérica não deixa a nossa para trás em nada. E, se você for estrangeiro, vai se acostumar com filas muito mais do que no Brasil. A não ser que você seja o Estêvão.
Porque, no futebol, Estêvão era o último da fila. O aluno novo que acabou de chegar e é normal que espere sua vez sem fazer muito barulho. Acontece que neste esporte quem fala é a bola e ela não respeita filas, hierarquias ou processos burocráticos.
No Chelsea, é um dos quatro jogadores a atuar em 16 dos 17 jogos da temporada, o 11º mais utilizado do elenco. Não é titular absoluto, mas é cada vez mais. Fez quatro gols em oito jogos de outubro para cá.
Na seleção, se aproveitou da ausência de Rodrygo, em junho, e também de Vini Jr, em setembro, para jogar. Nas duas últimas convocações, Raphinha, lesionado, não foi. E Estêvão seguiu no time. Fez cinco gols desde a chegada de Carlo Ancelotti. O último a chegar só tem três gols a menos que Vini Jr com a camisa amarela.
Ancelotti decidiu apostar em um esquema de jogo com muita mobilidade na frente. Não temos um grande camisa 10 (já falaremos disso) nem um super 9. A ideia então é jogar com vários atacantes mudando de posição e tentando gerar dúvida e espaço na defesa adversária.
Funcionou muito bem contra Coreia do Sul e Senegal. Contra o Japão, a ideia e as peças foram diferentes, e contra a Tunísia não funcionou quase nada. A não ser Estêvão. Enquanto Vini e Rodrygo revezam-se pela esquerda e Matheus Cunha tenta abrir espaço se movimentando sem parar por dentro, o caçula aguarda na ponta-direita a sua vez. E quanto mais difícil o jogo foi ficando contra os tunisianos, mais o time o procurava. Depois de Marquinhos e Caio Henrique, foi o jogador que mais interveio na partida (os defensores normalmente tocam mais na bola que os atacantes, é normal).
Terminou a partida com um gol de pênalti —furando a fila dos cobradores— e poderiam ter sido dois, se Ancelotti não quisesse tirar pressão do jovem escolhendo Paquetá (que depois admitiu estar ansioso) para fazer a segunda cobrança. Estêvão ainda acertou a trave no último lance.
O esquema com quatro atacantes de Ancelotti foi bem em jogos que o Brasil teve espaço e mal na primeira defesa fechada que encontrou pelo caminho. Se a ideia for manter e melhorar esse desenho tático, Estêvão precisa seguir no time. Uma das principais armas para desmontar esquemas tão fechados com cinco marcadores próximos à área é o drible curto. E isso Estêvão tem mais que seus concorrentes.
Depois de quase dez parágrafos, vamos abrir esse melão. E se Neymar estiver bem?
Aí a melhor ideia me parece ser mudar para um ataque mais pausado, com a entrada de um organizador (eu falei que chegaríamos aqui). Quanto menos idas e vindas, ataques e contra-ataques, com um jogador como Neymar —muito talentoso, porém mais lento e menos combativo—, melhor.
Estêvão também deve continuar na equipe se a ideia for essa, porque sempre se apresenta para o jogo nesse tal “jogo posicional” —em que cada um fica em suas posições fazendo funções específicas a ela.
A seleção pode ter deixado sensações desencontradas contra Senegal e depois Tunísia. Quem não deixou nenhum sentimento ambíguo foi Estêvão.
Sou contra as filas longas e a burocracia (brasileira e espanhola), mas também sou contra furadas de fila. Menos no futebol. A bola desburocratiza tudo. Deixem Estêvão passar.
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