Na tarde da última sexta-feira (23), os jogadores do GAS (Grêmio Atlético Sampaio) eram os únicos ocupantes do prédio da FRF (Federação Roraimense de Futebol). Bicampeões estaduais, eles se aglomeraram nas poltronas do auditório José Gama Xaud, no primeiro andar, para assistir a vídeos do Manaus, adversário que enfrentariam no dia seguinte pela Série D (quarta divisão) do Brasileiro.
A nova sede, inaugurada no começo do ano passado no bairro Aparecida, destoa do nível do futebol local, um dos mais indigentes do país. O nome do auditório homenageia o cartola que comanda como soberano a federação: Zeca Xaud, como é conhecido. Ele está no poder quase ininterruptamente nos 51 anos da entidade fundada em 1974, salvo em pequenos intervalos. Não há no país cartola tão antigo quanto ele.
Em cinco décadas, Xaud e o futebol roraimense permaneceram estacionados: ele no cargo, recebendo mensalmente mesadas da CBF, e os clubes locais na rabeira do país. Roraima foi o último estado a profissionalizar seu futebol, em 1995. No ranking das federações da CBF, ocupou sempre as derradeiras posições. Jamais teve um time nas Séries A e B do Brasileiro.
Em 2001, durante depoimento à CPI da CBF-Nike no Congresso, Xaud desfiou um rosário de queixas, atribuindo a penúria do futebol roraimense à falta de apoio governamental e previu: “Eu tenho para mim que, mais uns três anos, e as federações vão desaparecer. E eu sou adepto a essa ideia. Hoje, os clubes já assinam contrato, já vão na Globo, SBT, as federações e a CBF não se metem mais. Isso, para mim, é uma evolução.”
Levou uma descompostura do deputado Jurandil Juarez, que comandava a sessão. “O senhor teve a petulância de não encaminhar documento nenhum para uma CPI. Há cinco anos não apresenta nenhuma documentação à Receita Federal, e ainda tem a coragem de vir aqui e dizer que isso é culpa do governo”.
Em 2014, uma reportagem da Folha mostrou que a profissionalização ainda não existia na prática. Jogadores tinham de recorrer a outros empregos, e os estádios seguiam vazios apesar de ingressos gratuitos.
Há dois anos, em 2023, um já idoso Zeca Xaud –hoje tem 80 anos e problemas de saúde– transmitiu informalmente ao seu filho Samir a gestão da FRF. No início deste ano, o herdeiro foi eleito para assumir como presidente, mas somente a partir de 2027.
Aí apareceu a oportunidade da vida de Samir Xaud, médico de 41 anos, ungido pelas federações estaduais para ser o próximo presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) após a queda de Ednaldo Rodrigues. Xaud filho é candidato único e, apesar do boicote dos maiores clubes à eleição, será eleito neste domingo (25), pois, pelas regras da CBF, o voto das federações pesa mais e decide a parada.
Desde então, dentre tantas perguntas surgidas na estrambótica transição de poder em curso na bilionária confederação responsável pela seleção brasileira e pelos principais campeonatos do país, talvez a mais intrigante seja: por que o escolhido foi Xaud, com pouca experiência na área, oriundo de um estado minúsculo no futebol e filho de um cartola que simboliza o atraso na condução do esporte?
Embora clubes do estado elogiem os avanços do futebol local desde que Samir assumiu a gestão da federação, a resposta não está em Roraima, mas na cultura cartorial com que a CBF é conduzida.
“Rubens Lopes [presidente da Federação do RJ] brinca que nós somos como uma escola de samba. Existem vários enredos, todo mundo briga, briga, mas na hora em que se escolhe o enredo, toda a escola de samba canta o mesmo samba”, afirma Evandro Carvalho, presidente da Federação Pernambucana.
Aliado de Ednaldo, Carvalho batalhou pela manutenção do ex-presidente, depois quis apoiar Reinaldo Carneiro Bastos –da Federação Paulista, que tentou se lançar candidato, sem sucesso– e, por fim, apoiou Xaud.
É um ambiente que os críticos, a considerar pela ficha corrida das últimas décadas –todos os presidentes caíram enrolados com corrupção e malfeitos variados– preferem comparar à máfia, mas naturalmente não é esse o termo escolhido pelos seus integrantes.
Um cartola influente na transição diz que a CBF segue a lógica de um clube ou de cooperativas, sindicatos ou federações patronais: um ambiente fechado em que ninguém de fora entra nem apita.
Os sócios definiram que, para tentar lustrar a imagem mofada da CBF, convinha eleger alguém da “nova geração” –etariamente falando. Em reuniões fechadas, pinçaram três nomes: Ricardo Gluck Paul (Pará), Luciano Hocsman (Rio Grande do Sul) e Xaud, todos quarentões num clube repleto de setentões.
A zebra roraimense se impôs na conversa. Iniciado na política –filiado ao MDB, já concorreu a deputado estadual e deputado federal, sem sucesso–, é definido como cortês e aberto ao diálogo.
“É um cara muito afável, muito atencioso, acho que ele conquistou um espaço ali e funcionou meio como um equilíbrio”, comenta o ex-senador Romero Jucá, um dos padrinhos da última candidatura, em 2022 –Xaud está como primeiro suplente à Câmara dos Deputados.
“Vamos mudar a mentalidade, mas de maneira conjunta, pois foi essa liberdade que o Samir nos propôs, de uma administração descentralizada. Porque infelizmente a administração do Ednaldo era muito centralizada. Mesmo com a aceitação que ele tinha, não era um ambiente saudável, como a gente tá vendo agora”, complementa Ronei Freitas, presidente da Federação Goiana.
Nas conversas com os eleitores, Xaud soube explorar um ponto fraco do antecessor e usou como mantra termos como descentralizar, diálogo, construção coletiva e pacificação.
A inabilidade política foi uma das chaves da queda de Ednaldo, reeleito por unanimidade dois meses atrás e agora rifado pelo mesmo colégio eleitoral que o endossara. Centralizador e desconfiado, virou alvo de inimigos antigos, criados sobretudo por descumprir acordos.
Figura central do campo adversário foi Fernando Sarney, filho do ex-presidente José Sarney e vice da CBF há décadas, que ocupava os assentos da entidade na Conmebol e na Fifa. Ednaldo o desbancou para ocupar ele mesmo as cadeiras.
Fernando esperou um momento de fraqueza para derrubá-lo, junto com aliados de peso, como Flávio Zveiter, ex-presidente do STJD e filho do desembargador Luiz Zveiter, os Feijó (Gustavo e Felipe, pai e filho), da Federação Alagoana e aliados do deputado Arthur Lira, é uma força crescente na CBF, o IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa).
Fundado pelo ministro do STF Gilmar Mendes e dirigido por seu filho, Francisco Mendes, o IDP tem um convênio com a CBF Academy para gerir cursos e indicou boa parte dos atuais diretores da confederação.
A má gestão e os abusos e desvios revelados em reportagem recente da revista Piauí ajudaram a enfraquecer Ednaldo e minar os apoios que mantinha, até a decisão judicial que o afastou do cargo e detonou a transição, comandada pelo interventor Fernando Sarney.
Na hora da escolha, o sucessor, a profissão de médico –distintivo e lustre social– e a experiência como gestor –dirigiu o principal hospital de Roraima e foi secretário-adjunto de Saúde de Boa Vista– também contribuíram para a solução Xaud, apesar dos problemas que teve nos dois casos: é réu por improbidade administrativa pela primeira e acusado de ser ausente e acobertar malfeitos na segunda. Ele nega as duas acusações.
“A questão de denúncias, eu particularmente não conheço, com toda sinceridade. Pra mim não chegou nada disso, não sei se isso é fake news”, diz Freitas, da Federação Goiana.
Para ele, a judicialização da gestão Ednaldo manchava a imagem da CBF. “O nome dele já estava muito desgastado, toda hora é uma situação diferente, a gente está cansado, tem uma Copa do Mundo para começar. Quando surgiu essa possibilidade, já aglutinamos em torno de um nome que permite resolver. Isso está desmoralizando muito o futebol e a gente também, que é dirigente.”
Folha de S.Paulo