Das tantas ausências da série “Senna”, do Netflix, a dramaturgia talvez seja a mais notável. Simplesmente não há protagonistas a obstar ou, em menor grau, a auxiliar na proverbial jornada do herói. No máximo existem escadas —caso do chefe da McLaren, Ron Dennis, do pai de Ayrton, Miltão, e do constructo ficcional da repórter anglo-brasileira da revista Autosport.
Mas, como bem notou o jornalista Enor Paiano em sua conta do Substack, Nuno Cobra também foi largamente ignorado. Cobra foi o coach, na melhor acepção da palavra, de Senna, já que por dez anos o condicionou física e mentalmente.
Não bastava fazer de alguém que tinha um “coraçãozinho pequeno”, que “corria 25 minutos e desmaiava”, um atleta com um [sistema] cardiovascular abundante”, como Cobra disse a este colunista em 2017, em perfil para a revista Poder.
Em busca de fazer de Senna alguém absolutamente concentrado, invulnerável ou quase isso às enormes atribulações e ao estresse dos treinos e das longas provas de Fórmula 1, Cobra também colocou grande ênfase na preparação mental.
Mas, em vez de sessões de meditação ou ioga, como seria de se imaginar, a ideia era chegar a ela cuidando da alimentação, do sono, do tempo ocioso de Senna e do que os filhos de Cobra, hoje herdeiros do chamado “Método Nuno Cobra”, têm na conta de uma espécie de meditação ativa, uma atividade física que exija grande concentração – slackline, por exemplo.
Ao longo da década em que trabalharam juntos, Senna sempre pagou o devido tributo ao coach, o que amplifica sua ausência na série.
Em entrevista em 1993, o piloto sintetizou: “Foi melhorando todos os meus parâmetros […] A gente conseguiu aprender muito mais sobre as próprias limitações, tanto físicas quanto psicológicas. [Cobra] vem trabalhando sempre nisso, procurando elevar sempre os meus limites, com o objetivo […] no fundo também ligado a meu estado de saúde, minha vida futura.”
Mesmo com o paciente modelar e famosíssimo, Cobra sempre foi um “maverick”, alguém alijado do mainstream do mercado de preparação física.
É verdade que não se preocupou em submeter o “Método” à universidade —falha talvez da universidade—, mas foi pouquíssimo replicado, apesar das mais de cem reimpressões de seu best seller “A Semente da Vitória”, marca completamente fora da curva para o padrão editorial brasileiro.
Um dos filhos de Cobra, o também preparador físico —ou filósofo da saúde, como prefere— Nuno Cobra Jr. tem sido vocal em suas redes em fazer uma exegese própria, mas bastante reverente do método paterno. Nuninho o faz principalmente criticando o “sistema”, o mercado da atividade física em que predomina uma visão com fins especialmente estéticos.
Nuninho deplora o “no pain, no gain” e as “novas modas” de treinamento físico. Para ele, só há salvação no “minimalismo corporal” —no fundo um outro nome para o Método.
Com tudo isso, e embora meus tempos de crítico de espetáculos tenham ficado na poeira, acho pertinente informar que gostei de “Senna”. A edição à TikTok —fico a imaginar a novíssima geração a assistir “Arca Russa”—, instila emoção e competitividade à produção, atributos essenciais do biografado.
Por algumas horas, contemporâneos de Senna revivem, relembram e, meu caso, aprendem o tamanho descomunal do piloto.
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Folha de S.Paulo