A discussão sobre uma certa maldade inata vem desde pelo menos a Antiguidade. Para livrar a cara de um deus bondoso, santo Agostinho usou, entre outros, o famoso exemplo das peras verdes. A suposta maldade de tirá-las verdes das pereiras, impedindo que pessoas depois as pudessem comê-las, o filósofo atribuiu ao nosso livre-arbítrio, dado generosamente por Deus.
Tudo para dizer que há sujeitos que são muito mais desprezíveis do que o menino da pereira. Não há comparação. Deveriam ser privados de usar o livre-arbítrio, se de fato o têm. Abro espaço para a corredora Noelle Pessoa, agredida no parque Ibirapuera por outro corredor, homem, naturalmente, apenas por estar a correr no contrafluxo.
“Sábado, 19 de julho. Estava no meu treino longo de 20 km no Ibirapuera, um dos lugares que mais frequento desde que comecei a correr. Por orientação do meu fisioterapeuta, que me acompanha desde 2017, quando tive minha primeira inflamação na banda iliotibial, intercalo os sentidos da corrida para evitar sobrecarga no quadril.
Por isso, depois dos primeiros 10 km, inverti o trajeto, como sempre faço. Corro rente à divisão entre a pista e a ciclovia, respeitando o fluxo principal. Sei que muita gente torce o nariz, mas, até onde sei, não existe uma regra oficial de sentido no parque. Existe, sim, o bom senso.
Na subida da praça do Leão, vi um corredor vindo de frente. Tinha espaço. Muito espaço. Mas ele não desviou. Vinha reto. A cada passo, mais um na minha direção. Desviar significava ir para a ciclovia e arriscar ser atropelada por uma bike. Continuei na minha linha, firme na faixa vermelha.
Ele veio com o ombro. De propósito.
Atingiu meu maxilar com força. Uma pancada seca. Por um segundo, achei que tinha quebrado os dentes.
Parei. Tentei respirar. Pensar. Em vez de ir embora, dei a volta e fui atrás dele. Quando o alcancei, empurrei pelas costas. Ele virou e gritou: “Qual o seu problema?”.
Expliquei que ele me machucou, que veio para cima de mim, que quase me derrubou. A resposta dele? Que eu corria “no sentido errado”. E gritou. Gritou como se tivesse direito a isso. Como se um erro (que nem existe) justificasse a agressão.
Tentei explicar, tentei manter a razão. Levantei os braços, fiz menção de tocá-lo nos ombros, para pedir que parasse. E aí ele tentou me bater. Um tapa. No meu rosto. Esquivei-me. Reagi. Ele revidou também.
Até que chegaram outras pessoas. Um rapaz que eu nem conhecia tentou separar a briga. E me disse que era melhor eu parar para não perder a razão.
Razão?
A razão me escapava no meio da dor, da revolta, da vergonha e do medo. Porque ali, mais uma vez, uma mulher foi agredida, fisicamente, verbalmente e simbolicamente, e ainda precisou parecer “racional” para ser ouvida.
Depois do ocorrido, compartilhei-o nas redes. Pensei duas vezes antes. Pensei até em deixar para lá. Mas falei. E foi como abrir uma caixa de Pandora. Vieram dezenas de mensagens. Outras mulheres. Outros parques. Outros corpos atingidos, silenciados, empurrados, literal e metaforicamente.
Não é sobre correr no “sentido certo”. É sobre o direito de correr em paz.
De ocupar o espaço sem ser testada, confrontada, agredida.
Porque o que esse homem fez foi covardia. E o que o silêncio social continua fazendo é cumplicidade.
A gente corre para viver. Mas, em 2025 ainda precisa correr para sobreviver.”
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Folha de S.Paulo