É provável que você já tenha ouvido alguém dizer que a corrida lhe ensinou a “ter disciplina”. Se não ouviu, já leu –trata-se de um clássico das redes sociais, notadamente o LinkedIn.
Mas não é a corrida que ensina alguém a ter disciplina. É a disciplina (e vários outros fatores) que faz com que você passe a realizar costumeiramente alguma coisa, inclusive correr. Perdão pelo argumento tautológico.
Reconheço que dificilmente alguém diz que a disciplina o ensinou a trabalhar ou a tomar o metrô. A corrida tem essa lógica especial por ser uma atividade muito fácil de praticar –e de nela a gente melhorar.
Por isso ela se torna uma saída excelente do sedentarismo, com grandes dividendos de condicionamento físico, notadamente cardiovasculares. Muitos hurras devem ser dados à corrida. Mas a César o que é de César: do ponto de vista da evolução pessoal, ela tem o mesmíssimo valor de qualquer coisa um dia relativamente desconhecida que passamos aos poucos a dominar.
Mas há essa tendência a supervalorizar a corrida, já que, esporte individual, dubla bem como paradigma de desempenho. Você sabe que está a evoluir ao aumentar distâncias ou a tornar-se mais veloz.
Assim, metas e desafios se encaixam bem aqui, pois transferimos para o cascalho algo que desejaríamos talvez ver realizado em outros campos, como: aprender outro idioma; tornar-se poligâmico ou asceta; mudar de profissão ou ser reconhecido pelo chefe.
Com tudo isso, quero crer que uma dimensão lúdica, muito mais amorosa e porra-louca da corrida, perde-se. O troço passa a se tornar disciplinado demais, e o cabra, se por alguma razão não consegue correr os tais 12 km prescritos para aquela manhã, sente-se o pior dos mortais.
Muitas pessoas acham que correr é difícil, exige um aprendizado, esquecendo que a atividade é realizada intuitivamente pela gente desde os cueiros. Quem antes mesmo de andar, mal erguendo-se nas pernas, já corria? Sim, você, eu, a torcida do Flamengo –e a da Burra.
Corro há muitos anos, e os cascalhos mais memoráveis da minha vida envolveram alguma perda de controle, alguma intervenção do acaso, fosse a aparição de um pastor de ovelhas a estorvar a passagem de uma trilha no Peloponeso, fosse a chegada do trem da CPTM no cruzamento de nível da Barra Funda. Ou o pôr do sol na USP.
Por outro lado, admito, foi gloriosa a sensação de baixar o tempo da meia maratona outro dia com o auxílio luxuoso de um tênis de placa, digna, talvez, da emoção de um amigo, o Niltão, que se sentiu como pinto no lixo ao descobrir-se capaz de terminar a prova de 10K, ele que por quase uma década só se inscreveu para corridas de 5K.
Tudo isso para chegar até aqui, onde eu imaginava que começaria este texto: quando alguém lhe disser que é preciso “respeitar” a maratona, dando a essa prova já tão excessivamente glamourizada mais uma demão de fetiche, simplesmente o ignore.
Para completar os tais 42 quilômetros não é necessário abraçar uma posologia estrita e interminável de treinos, com essa evolução gradual e segura prescrita pelo cânone, ou, o que dá na mesma, pelo mercado.
Se eu, que jamais usei planilha, que adotei muito mais o receituário Johnny Alf, já a completei 11 vezes, você também pode.
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Folha de S.Paulo