Em um dos parques onde corro aqui em Londres, uma placa azul que fica em frente a uma pista avisa que Sir Roger Bannister treinou ali. Os ingleses valorizam a própria história e é comum ver menções espalhadas pela cidade, em lugares onde figuras célebres viveram ou frequentaram.
Para nós, que treinamos “em quilômetros”, o nome desse britânico pode não ser familiar. Mas, em 1954, Bannister conseguiu um feito que revolucionou a corrida e parecia impossível: correu uma milha (1,609 km) abaixo de quatro minutos, um pace impressionante de menos de 2min30seg por quilômetro.
Mais de 70 anos depois, nenhuma mulher conseguiu quebrar essa barreira. Agora cientistas garantem que é possível.
Dá para ver essa disparidade de gênero de duas formas. Em geral, homens são mais velozes, mas há infinitamente menos estudos científicos exclusivamente em mulheres quando comparados aos feitos no sexo masculino. Isso precisa mudar, porque impacta em nutrição e equipamentos esportivos específicos, investimentos em geral.
Até um fenômeno como o queniano Eliud Kipchoge só conseguiu correr a distância da maratona em menos de duas horas em um projeto feito especialmente para a quebra da marca.
Além disso há a insegurança de correr na rua à noite ou sozinha, o que afasta mulheres da corrida, e as horrendas mortes por feminicídio que vitimizam corredoras africanas. Mas vamos ao copo meio cheio.
É dos pés da queniana Faith Kipyegon, 31 anos, que pode sair o feito inédito. Ela é dona dos recordes mundiais nos 1.500 m (tricampeã olímpica na prova), 5.000 m e na distância de uma milha. Correu esta última em 4min07s64 e pesquisadores acreditam que ela pode baixar o tempo para 3min59s4, exatamente o mesmo de Bannister.
Seria necessário ter um cenário perfeito, como o planejado para o recorde de Kipchoge. Isso significa condições climáticas, tênis, tipo da pista ideais.
A ideia é ter quatro coelhos —os corredores que ajudam a manter o ritmo— dois em cada metade da prova, sendo um na frente e outro atrás dela para diminuir a resistência do vento.
Substituir coelhos durante o trajeto, como fez Kipchoge, não é permitido pela World Athletics. Significa que a marca dela, se batida, não será oficial. Usando homens também não. Mas provaria que é fisiologicamente possível. Uma das pesquisadoras defende ter uma equipe totalmente feminina e diz que a façanha ajudaria a inspirar corredoras no mundo inteiro, que superariam uma barreira mental.
Concordo, e tem mais. Vale lembrar que empresas de equipamentos esportivos testam e criam tênis, roupas e acessórios de corrida para atletas de elite e, depois, adaptam para nós, mortais, para que possamos aproveitar essa tecnologia. No caso das mulheres, isso inclui modelos feitos especificamente para nossos corpos, tamanhos e formas em um nível de detalhe que, anos atrás, praticamente não existia.
Parece que ainda não se sabe se a queniana toparia o desafio. Tomara que sim. Se a tentativa acontecer, já prevejo críticas de que seria um golpe de marketing, como alguns poucos fizeram com o Kipchoge.
Tentar desqualificar esses atletas que têm um talento sobre-humano é bobagem e só atrasa a evolução do esporte. Imagina que legal uma menina, correndo por aí, deparar com a placa: “Faith Kipyegon treinou aqui”.
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Folha de S.Paulo