Viralizaram nos últimos dias nas redes sociais cenas do evento de apresentação do meia Gerson no Zenit, da Rússia, com o jogador surgindo no palco com uma expressão aparentemente surpresa diante de toda a festa com fogos e dançarinas que ocorria em seu entorno.
Mais do que a cara de poucos amigos do meio-campista da seleção brasileira, a cena representa o interesse crescente de clubes russos no futebol sul-americano, em particular a partir do início da guerra na Ucrânia.
Nas últimas quatro janelas de transferência desde fevereiro de 2022, quando o exército de Vladimir Putin invadiu o território ucraniano, os times russos investiram cerca de R$ 1,5 bilhão —em valores corrigidos pela inflação— para tirar 52 atletas que se destacaram por equipes da América do Sul.
Nas quatro janelas imediatamente anteriores, os gastos haviam sido de R$ 830 milhões, envolvendo dez atletas.
Contribuíram para a movimentação crescente de equipes russas em direção aos clubes sul-americanos as sanções econômicas impostas por países da União Europeia, com as portas se fechando para a negociação de atletas com os pares europeus.
Segundo Mateus Silveira, advogado e professor especialista em Direito Internacional, embora não existam sanções econômicas diretamente aos clubes russos, há uma série de medidas que faz com que empresas e times da UE evitem fazer negócios com o país.
Entre elas, a exclusão de bancos russos do sistema internacional financeiro chamado Swift, o congelamento de ativos e as restrições de acesso ao mercado de capitais.
“Magnatas russos também foram impedidos de ter negócios na Europa, como times de futebol. Um dos exemplos é do atual campeão do mundo, o Chelsea, que era de um russo [Roman Abramovich] que teve todos os seus ativos congelados na Inglaterra e foi obrigado a vender o clube com a supervisão do governo inglês.”
Regras excepcionais no regulamento de transferências da Fifa também passaram a prever que atletas ou técnicos estrangeiros vinculados a clubes russos ou ucranianos pudessem se desvincular, por meio da suspensão unilateral de seus contratos.
Sob o mecanismo da Fifa, as equipes passaram a sofrer com diversas saídas de atletas. O atacante Yuri Alberto e o lateral Ayrton Lucas foram emprestados por Zenit e Spartak Moscou para Corinthians e Flamengo, respectivamente, enquanto o zagueiro Vitão e o meia Pedrinho, então no Shakhtar Donetsk, migraram para Internacional e Atlético Mineiro.
Para conseguir repor as saídas e reforçar seus elencos, os times russos tiveram de voltar seu foco para a América do Sul.
Nas janelas visando as temporadas 2023/24 e 2024/25, os clubes russos chegaram a bater o recorde de investimentos para tirar atletas de equipes sul-americanas.
Segundo dados do site Transfermarkt, foram 17 contratações em cada uma das janelas, com um investimento total somado de aproximadamente R$ 1 bilhão.
“A redução do volume de transferências de jogadores de clubes europeus para a Rússia e o aumento do número de jogadores sul-americanos se transferindo para o país podem estar mais associadas a outros fatores derivados da própria guerra, como as restrições de fluxo financeiro e as barreiras comerciais impostas pela UE”, afirmou Marcel Belfiore, especialista em Direito Desportivo e sócio do Ambiel Bonilha Advogados.
Na atual janela, que segue aberta até 11 de setembro, Gerson foi a contratação mais cara, com o Zenit desembolsando 25 milhões de euros (R$ 162,5 milhões) para tirar o meia do Flamengo.
Vêm na sequência o lateral-esquerdo argentino Román Vega, que deixou o Argentinos Juniors por 7,7 milhões de euros (R$ 50 milhões), também rumo ao Zenit, e a joia de Cotia Matheus Alves, negociado pelo São Paulo junto ao CSKA por 5,1 milhões de euros (R$ 33,1 milhões).
Na janela anterior, o Zenit também já havia sido o responsável por levar Luiz Henrique, um dos destaques do Botafogo campeão brasileiro e da Copa Libertadores. O desempenho no alvinegro levou o atacante até a seleção, mas ele ainda não voltou a ser chamado desde a transferência para a Rússia.
Apesar da mudança para o futebol russo deixar o jogador mais longe dos holofotes, o ex-volante Dudu Cearense discorda daqueles que acreditam que atuar no país elimina as chances de o atleta ser lembrado pelo técnico da seleção brasileira.
Com uma passagem de quase quatro anos pelo CSKA de Moscou, entre 2005 e 2008, ele seguiu no período sendo chamado para defender a amarelinha, tanto por Carlos Alberto Parreira quanto por Dunga.
“Alguns me chamavam de maluco quando me transferi [para o CSKA]. Os primeiros seis meses foram muito difíceis para me adaptar à cultura, ao frio, mas depois tive uma boa experiência”, disse à Folha o ex-jogador, que hoje atua no mercado financeiro à frente do escritório Okto Investimentos, com cerca de R$ 100 milhões sob aconselhamento.
Superadas as dificuldades iniciais na capital russa, Dudu se estabeleceu no meio de campo de um time que ainda contava com os brasileiros Daniel Carvalho e Vágner Love, também convocados para a seleção durante a passagem pelo CSKA. “Desbravamos um mercado em que poucos acreditavam.”
Pelo clube, foram 97 partidas e oito gols, com a conquista do bicampeonato da liga russa, da Copa e da Supercopa da Rússia, além de participações na Champions League.
Segundo o ex-volante, o jogador pode acabar tendo mais chance de ser convocado se fizer parte de um time campeão na Rússia do que jogando na Espanha ou na Itália, mas em uma equipe que costuma oscilar no meio da tabela.
“Um atleta como o Gerson poderia esperar mais um ano, até a Copa [de 2026], para depois buscar a transferência para um grande centro? Pode ser, mas e se no meio do caminho ele tiver uma grave lesão? A gente não sabe…um ano pode ser uma eternidade no futebol”, afirmou Dudu.
Ele acrescentou que, por causa dos investimentos para a Copa do Mundo na Rússia, em 2018, hoje os jogadores contam com estruturas muito acima daquelas à disposição em sua época, com estádios e centros de treinamento modernos e gramados de boa qualidade.
“Independentemente da guerra, não tem violência no país. As ruas em Moscou são todas controladas por câmeras”, afirmou Dudu, que esteve recentemente na cidade em homenagem promovida pelo CSKA a ex-jogadores que fizeram história pelo clube.
Diretor da Roc Nation Sports no Brasil, empresa que gerencia a carreira de jogadores como Vinicius Junior, Endrick e Gabriel Martinelli, Thiago Freitas afirmou que a maioria dos atletas aspira convocações interessados principalmente na sua valorização e nos ganhos monetários que terão no futuro.
“Se eles podem obter ganhos maiores do que esperavam ter com as convocações, não existe razão para recusarem essas ofertas.”
Ele acrescentou que, sabendo que a carreira tem prazo de validade relativamente curto, os jogadores tendem a adotar uma postura bastante pragmática.
“Suas maiores prioridades costumam ser quanto dinheiro poderão ganhar e quanto dinheiro terão ao se aposentar.”
“É verdade que os salários e premiações que as equipes ofertam são tentadoras, mas não acho que seja apenas isso que faça com que os jogadores tenham o desejo de atuar lá”, afirmou Claudio Fiorito, CEO da P&P Sport Management Brasil, empresa que gerencia a carreira do técnico Simone Inzaghi e do atacante Lukaku.
“As condições do país e de estrutura são tão ricas quanto de outros países europeus.”
Jogadores mais caros da América do Sul comprados por times russos
- Luiz Henrique – 33 milhões de euros
- Gerson – 25 milhões de euros
- Yuri Alberto – 25 milhões de euros
- Artur – 15 milhões de euros
- Claudinho – 12 milhões de euros
- Luciano Gondou – 12 milhões de euros
Folha de S.Paulo