Enquanto a família engole os restos do peru de anteontem, amarga a ressaca dos muitos brindes ao bom velhinho da Lapônia, e fofoca pelo zap sobre a pendenga anual com o cunhado e o indefectível tio do pavê, uns e outros esquisitos nos pegamos pensando que seria tão, mas tão mais gostoso estar saboreando um miojo com salsicha em lata em algum canto perdido desse mundão dos deuses. Do fundo do baú, podemos até ouvir a mochila bufar de impaciência pela próxima trilha. No armário, as botas surradas olham torto para o sapato de saltinho que infernizou minha ceia. Na prateleira do alto, o saco de dormir ameaça despejar pesadelos à trilheira de meia tigela, quase uma impostora que ganha a vida se locupletando nas façanhas alheias.
Para o comum dos mortais, que sonha com cada feriado prolongado para se esparramar na praia mais badalada, repleta de caixinhas de som, baldinhos de areia e queijinhos coalhos na brasa, ou cujo ideal de férias é se aboletar a bordo de um transatlântico mastodôntico cheio de mordomias, all-inclusive e muito engov, sonhar com os perrengues do mato pode soar como a mais pura manifestação de masoquismo.
Mas o fato é que se você já…
…acordou no meio da madrugada numa caverna gelada para ver que seu braço foi mordido por um morcego, forçando uma corrida atrás da vacina antirrábica;
…se deitou no meio da trilha empoeirada jurando que nunca mais se pega nessa encrenca, para daí a pouco seguir em frente desafiando as lombares, as caimbras e os piolhos dos albergues no Caminho de Santiago;
…passou a noite em claro debaixo de chuva em plena floresta amazônica xingando à luz do Kindle os bugios que não param de urrar do alto das árvores, incomodados pelas criaturas alienígenas embrulhadas em seus mosquiteiros;
…tremeu de frio toda uma noite em pleno Salar de Uyuni embrulhada com todas as roupas de sua bagagem porque fora do hotel de sal sem aquecimento fazia -15° e a agência boliviana havia alugado um saco de dormir que não servia nem para metade disso;
…subiu ao alto do monte Roraima e ficou quicando entre as partes brancas do tabuleiro daquela paisagem lunar tentando se convencer de que aquela formação rochosa lá à frente parece mesmo um macaco chupando sorvete…
…gelou a garrafa de espumante pendurada de uma cordinha na água gelada de uma praia deserta, para brindar ao ano novo em grande estilo…
…você pode dizer que tem histórias para contar. E a você, leitor, só posso dizer que, neste ano que se anuncia, espero ouvir (e espalhar) muitos de seus perrengues. Porque perrengue de respeito, dos bons, é aquele que compartilhamos às gargalhadas com os amigos ao redor de uma fogueira. Então, que venha 2025 e que todos os perrengues sejam só aqueles dignos de saudades, suspiros e risadas.
Nos vemos no ano que vem!
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Folha de S.Paulo