Argentina: Torcida organizada volta ao debate com Milei – 12/04/2025 – Esporte


Uma vez por semana, grupos de aposentados da Argentina têm mantido um ritual: eles se reúnem em frente ao Congresso, no centro de Buenos Aires, para protestar contra as perdas geradas pelo plano de ajuste do governo de Javier Milei. Mas aquela não seria uma quarta-feira como as outras.

Em 12 março, argumentando que torcidas organizadas de clubes de futebol do país se articularam para reforçar a marcha e que torcedores atiraram pedras e outros objetos contra as forças de segurança, o governo reprimiu a manifestação com gás, balas de borracha e caminhões-pipa para dispersar a multidão.

Nos dias seguintes, as autoridades proibiram a entrada em estádios de 26 torcedores que participaram dos protestos, chegou a oferecer uma recompensa equivalente a R$ 55 mil para que fossem identificadas mais pessoas e atribuiu o aumento da repressão à presença de barras bravas.

Barras bravas são grupos organizados de torcedores, que ficaram conhecidos por episódios violentos. São semelhantes aos hooligans e ultras de outros países. Assim como as torcidas organizadas representam uma parte dos fãs do clube, as barras representam uma parte das organizadas.

Há semelhanças com as torcidas jovens do Brasil, explica o sociólogo e antropólogo argentino Nicolas Cabrera, fundador e pesquisador do Observatório Social do Futebol, da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

“São grupos muito organizados, com hierarquia, divisão de trabalho, e que operam sempre ao redor de um clube. A maioria é de homens que vêm de setores populares e da classe média, com uma ideologia muitas vezes homofóbica, onde a mulher também não tem lugar e que valoriza a masculinidade agressiva.”

Nos estádios argentinos, eles puxam os cantos, levam as baterias e recebem os jogadores antes das partidas. E também, como outras torcidas organizadas, viajam pelo país e internacionalmente em caravanas, recebendo para isso ajuda financeira dos clubes e, em alguns casos, de jogadores.

“Elas não têm CNPJ, não têm um reconhecimento jurídico. Então, é como se não existissem, mas existem”, diz Cabrera. Até por isso, é difícil estimar o número de componentes de uma barra, e mesmo os líderes de alguns desses grupos só passaram a se assumir com representantes dessas torcidas mais recentemente, com a popularização das redes sociais.

Os nomes das torcidas também carregam simbolismo. É como se os integrantes da “La 12” fossem o 12º jogador em campo nas partidas do Boca Juniors, enquanto os “Borrachos del Tablón”, do River, fazem referência aos “tablones de cancha”, as arquibancadas de madeira que existiam nos estádios.

Historicamente, as barras têm uma forte ligação territorial e acabam influenciando a política nos bairros e cidades ao redor dos clubes. Em alguns casos, colaboram com políticos em troca de serviços de segurança ou apoio, explica o professor José Garriga Zucal, da Universidade Nacional de San Martín.

“Mesmo para os maiores clubes, o território é uma dimensão central quando se pensa no futebol argentino. Para dar um exemplo, se você quisesse se envolver na política em San Martín, onde o Chacarita Juniors é um clube muito importante, seria difícil não ter alguma ligação com alguém da barra.”

Principalmente nas primeiras décadas após a redemocratização da Argentina, em 1983, era comum que políticos locais requisitassem apoio das barras para eventos de campanhas nas proximidades dos estádios, pagassem um integrante para vigiar muros pintados com a propaganda do candidato ou que pedissem aos chefes das torcidas que enchessem ônibus para aumentar o público em comícios.

Nos últimos anos, essas relações foram mudando, embora em áreas de maior peso do peronismo, como as cidades da Grande Buenos Aires, a proximidade da torcida com esse grupo se mantenha forte. Com os grupos mais ligados a um determinado sindicato, acontece o mesmo.

Já na política interna dos clubes, a influência de barras bravas se transformou ao longo dos anos, mas elas ainda têm um papel significativo.

“Não há um clube argentino em que as barras não tenham força. Elas regulam o clima e os humores, e também sempre há a ameaça latente da violência”, acrescenta Zucal, que é autor de diferentes livros sobre a relação das torcidas de futebol na Argentina com a violência, como “La Era del Aguante – Barras, Hinchas, Violencias y Muerte en el Fútbol Argentino” (ed. Planeta; R$ 137; 176 págs.).

É importante lembrar que integrantes de barras são sócios dos clubes e, portanto, têm direito a opinar e a fazer mobilizações, diz Cabrera, que é autor de “Que la Cuenten como Quieran – Pelear, Viajar y Alentar en una Barra del Fútbol Argentino” (ed. Prometeo; R$ 143; 354 págs.).

Com a chegada de Milei ao poder, em 2023, seu projeto ultraliberal não poupou o mundo do futebol. O presidente chegou a tentar transformar por decreto os clubes em SAFs (Sociedades Anônimas do Futebol). A investida foi barrada na Justiça, após um pedido da AFA (Federação Argentina de Futebol), mas o governo não desistiu.

Para Zucal, as barras não se opõem necessariamente às sociedades anônimas no futebol. De acordo com ele, as torcidas organizadas violentas estão mais interessadas em negócios informais, como os serviços de estacionamento e venda de produtos em volta dos estádios.

Por isso, os dois pesquisadores afirmam que a participação de torcedores na marcha dos aposentados não envolve os primeiros escalões de barras, mas sim torcedores organizados não violentos ou integrantes sem peso político.

“Pode ser que algum componente de uma, duas ou três barras tenha comparecido aos protestos. Mas as barras são estruturas totalmente organizadas e hierárquicas. Se a liderança fala ‘vamos’, um monte de gente vai para a rua com faixas, com camisas, para mostrar força. Isso não aconteceu”, diz Cabrera.

Zucal concorda que a manifestação dos aposentados não contou com barras bravas, ao menos não com integrantes do topo da hierarquia nas torcidas. “Se algum estava lá, era minoria. O governo difundiu que o vandalismo foi causado por barras apenas para estigmatizar e deslegitimar a reivindicação.”

Após o incidente na marcha, a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, apresentou um projeto de “lei antibarras”, em que as torcidas seriam consideradas associações ilegais, seus líderes seriam investigados, e os clubes, penalizados.

“Há muito tempo a Argentina precisa resolver um problema estrutural envolvendo as barras no futebol”, disse a ministra, que já tinha tentado algo parecido quando fez parte do governo de Mauricio Macri (2015-2019).

Procurado pela Folha para se manifestar sobre os desdobramentos das investigações a respeito da presença de barras no protesto dos aposentados, o Ministério da Segurança não respondeu.

Conheça algumas das torcidas mais importantes da Argentina

. La 12
Time: Boca Juniors
Fundação: 1969
Principal líder: Rafael Di Zeo
Percentual de torcedores do clube*: 29%

. Los Borrachos del Tablón
Time: River Plate
Fundação: 1975
Principal líder: Ariel Calvici
Percentual de torcedores do clube*: 26%

. La Barra del Rojo
Time: Independiente
Fundação: Década de 1950
Principal líder: “Bebote” Álvarez
Percentual de torcedores do clube*: 5%

. La Guardia Imperial
Time: Racing
Fundação: 1958
Principal líder: Matías Alfonzo
Percentual de torcedores do clube*: 5%

. La Butteler
Time: San Lorenzo
Fundação: 1959
Principal líder: Cristian Evangelista
Percentual de torcedores do clube*: 5%

*Percentual de argentinos que torcem para o clube, integrantes ou não de organizadas, de acordo com o levantamento “Radiografia do Torcedor de Futebol Argentino”, de 2021, da Kantar

Fontes: Kantar e Barrabrava.net



Folha de S.Paulo