A volta do complexo de vira-latas à seleção brasileira – 05/06/2025 – O Mundo É uma Bola


Pouco antes da Copa do Mundo da Suécia, em 1958, o genial Nelson Rodrigues escreveu a crônica “Complexo de vira-latas”.

“Por complexo de vira-latas”, redigiu, “entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca em face do resto do mundo. Em todos os setores e, sobretudo, no futebol.”

Para Nelson, o brasileiro ampliou essa subalternidade, no futebol, a partir da derrota na decisão da Copa de 1950, em casa, para o Uruguai, na qual, nas palavras dele, perdemos “por um motivo simples: porque Obdulio [Varela, o capitão da Celeste] nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos”.

Perdíamos, segundo o escritor e dramaturgo, não por não termos técnica ou tática, mas porque nos sentíamos inferiores.

Note a comparação para emblemar o brasileiro. O vira-lata é um cão sem uma linhagem genética definida, devido à mistura de raças. Assim eram os daqui que jogavam futebol à época. Mestiços. Longe da nobreza ou da riqueza.

Meio que escanteados e vistos com desconfiança pela sociedade, assim como os vira-latas de então, que flanavam cabisbaixos pelas ruas, sem dono, revirando as latas de lixo em busca de restos de comida, enxotados pelos transeuntes. Uns coitados.

Com o êxito de Pelé, Garrincha e companhia nos campos escandinavos, o complexo de vira-latas esvaiu-se. Maiorais, tornamo-nos pentacampeões mundiais.

Mas, depois de ganhar em 2002, perdemos a Copa de 2006, e a de 2010, e a de 2014, e a de 2018, e a de 2022.

Ficamos 17 anos sem eleger um melhor do mundo, até que Vini Junior faturou o prêmio The Best, da Fifa, em 2024. Por quê? Pelas atuações no Real Madrid, não com a camisa amarela da seleção.

Ele, como os demais jogadores, tem amarelado com a, como dizia Zagallo, “amarelinha”. Marquinhos, campeão europeu há poucos dias com o francês PSG, declarou, depois de derrota para o Paraguai no ano passado, faltar confiança à seleção.

A real é que os adversários não tremem mais diante do Brasil. E nós, brasileiros (time e torcida), se não trememos, estamos incorporando o “viralatismo” de Nelson.

A autoestima baixou vertiginosamente pós-Copa do Qatar. No caminho para a de 2026, foram três derrotas seguidas nas Eliminatórias, algo inédito. Até esta quinta (5), em 25 jogos, empatamos 8 e perdemos 7, com um aproveitamento de vitórias de meros 40%.

Para culminar, a humilhação de 4 a 1 ante a Argentina, que derrubou Dorival Júnior.

A solução? Recorrer a um treinador estrangeiro. Nada mais vergonhoso para a classe de técnicos nacionais, vista hoje mais do que nunca como uma categoria, sempre aludindo a Nelson, vira-lata, desconceituada.

Carlo Ancelotti, um italiano, na seleção brasileira. Qualificado, mas não fala nossa língua e em seus 65 anos nunca tinha pisado no Rio, nosso maior cartão-postal. Sem xenofobia, essa é a realidade.

Em outros tempos, seria um delírio dar as rédeas da seleção, a pátria em chuteiras (como dizia Nelson), a um gringo. Agora, não. Perdemos o amor-próprio e precisamos de um forasteiro para dar certo.

Atualmente, o vira-lata não é mais marginalizado ou desprezado. Porém, na ausência de um termo para o complexo que vivemos, recorro ao passado para verbalizar o sentimento presente relacionado à seleção. Viralatamos.

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Folha de S.Paulo