Aqui na Inglaterra, a reação é de surpresa com o que está acontecendo com a seleção brasileira. Os ingleses são encantados com nosso futebol e com a camisa amarela. Mas, como contra fatos não há argumentos, manchetes no dia seguinte ao Argentina x Brasil por aqui citavam uma atuação “vergonhosa” e “humilhante.” O fim da partida, às 2h no horário local, fez o time ser poupado graças ao fuso horário.
Fosse mais cedo, a repercussão negativa na imprensa seria maior. Uma boa análise foi a do jornal The Guardian. O repórter começou o texto lembrando que José Mourinho certa vez afirmou que “um time sem um brasileiro não é um time”, e o encerrou, retificando: “um time com 11 brasileiros ainda não é um time”.
Em alguma medida, com as devidas diferenças, os inventores desse esporte passam por algo parecido com sua própria seleção e estão aprendendo lições que o futebol brasileiro poderia, se não quiser se espelhar, pelo menos observar.
Primeiro, os ingleses sabem que não importa se são do país que criou o futebol e ama esse esporte, ou têm a liga doméstica mais poderosa do mundo. Nada como um longo jejum de troféus para deixar a seleção inglesa humilde. O único título da Copa do Mundo, em 1966, faz parte de um passado muito distante, e eles não se agarram a isso.
No caso do Brasil, ter conquistado a última das cinco estrelas da camisa há quase 23 anos não deveria deixar sensação parecida?
Além disso, os ingleses, sempre organizados com seus planejamentos de longo prazo, tiveram que reprogramar a rota da preparação para a Copa de 2026. Depois que o treinador Gareth Southgate pediu demissão, no ano passado, a federação de futebol anunciou um alemão como substituto (quase equivalente a ter um argentino no comando da seleção brasileira). Thomas Tuchel só estreou na semana passada, a um ano e três meses do Mundial. Mesmo em cima da hora, bancaram a mudança.
Outro ponto em comum é que eles têm, assim como o Brasil, um timaço no papel, com craques nas principais ligas europeias. Mas têm percebido na marra, torneio após torneio, que não basta talento para ter uma equipe vencedora. Como consequência, veio uma crise de identidade, afetando jogadores e o desejo de defender a seleção. Nove deles desistiram de jogar pela Inglaterra ao serem convocados em novembro do ano passado por um treinador interino, antes de Tuchel chegar. Alegaram lesões, mas o capitão Harry Kane disse que alguns tinham tirado vantagem da situação, dando a entender que seria falta de vontade.
Independentemente de quem disse a verdade, o episódio deixou a mensagem de que não há amor incondicional por uma camisa, por mais ou menos pesada que ela seja. Isso vale no futebol, no mundo corporativo, no seu trabalho: ter orgulho de representar um clube, uma seleção ou uma empresa depende, claro, do próprio talento e dedicação ao cargo, mas também de incentivos, boa gestão e comando e expectativa de resultados positivos.
Na época, o experiente Kane deixou um aviso. Disse que criar uma identidade e a cultura de defender a seleção é algo que “leva um longo tempo para construir e pouco para perder”, e “vai embora rapidamente quando não se tem cuidado”.
Serve não só para o futuro próximo, até a Copa de 2026, mas para além.
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