Inspirada por jogadores surdos, jovem em SC faz interpretação em libras para campeonatos de games

Jessyka de Souza faz interpretação em libras durante campeonato — Foto: Reprodução/Redes sociaisA tradutora e interprete de libras Jessyka Maia de Souza se interessou pela Língua Brasileira de Sinais ao conhecer a então namorada surda de um tio. Já na faculdade de letras-libras, para profundar esta forma de comunicação, compreendeu como uma deficiência auditiva pode interferir na experiência de jogadores quando, durante uma partida com um professor surdo, viu que ele não reagia a algumas interações nos games. Assim, se tornou intérprete em libras para campeonatos de eSports.

Os jogadores com alguma deficiência auditiva afirmam que esse trabalho os ajuda a acompanhar melhor as partidas e faz com que eles se sintam mais incluídos (veja mais abaixo).

Conhecida na internet pelo nome “Suuhgetsu”, Jessyka, que tem 26 anos e mora em Florianópolis, consegue juntar o conhecimento que adquiriu estudando letras-libras na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com uma paixão que vem desde a infância: os games.

A Língua Brasileira de Sinais foi criada pela lei 10.436/2002 e é a língua oficial das pessoas surdas no país. Ela possui estrutura gramatical própria, ou seja, é um idioma, como o inglês ou francês. Ela não é a “tradução” do português com sinais. Inclusive, há surdos que se comunicam por libras e não são fluentes na língua portuguesa.

Ex-namorada de tio fez despertar interesse por libras

Jessyka conheceu a linguagem de sinais através de um tio, que teve uma namorada surda.

“Ele trouxe a menina e a minha vó começou a falar assim: ‘ele não quer nada com a vida, ele não quer trabalhar. Se você ficar aqui, tu vais ficar estagnada que nem ele’. E a moça olhava para ela, sorria e baixava a cabeça. Ela falou ‘Ah, eu não acredito, ainda tá debochando de mim’. Aí ele falou: ‘não, ela é surda'”, contou.

“Todo mundo ficou ‘caramba, mas por que você não avisou que ela era surda, porque ninguém tinha ficado falando com ela o tempo todo, igual a gente tá falando, né?’ E aí ninguém sabia libras, a gente nem sabia o que era libras. Ela se comunicava por papel”, continuou.

Através da escrita, Jessyka pediu à namorada do tio que ensinassem alguns sinais. O interesse fez com que ela decidisse fazer graduação em letras-libras.

Trabalho surgiu após falta de reação de jogador a sons

A paixão pelos jogos eletrônicos vem da infância, mas a partida que chamou a atenção dela para a experiência dos jogadores com alguma deficiência auditiva ocorreu em 2017.

“Eu estava jogando com um professor meu que é surdo e a gente começou a jogar. Aí eu comecei a perceber situações que ele não reagia a interações com som”, explicou Jessyka.

Os dois jogavam o famoso jogo de batalhas “League of Legends”. Em um determinado momento, um dos personagens solta a habilidade mais forte e vem correndo dando um grito de guerra.

“Eu notava que ele, o meu professor, só reagia quando ele já tava vendo o Sion [personagem do jogo]. Eu falava assim, ‘nossa, mas se ele já tá gritando desde antes, por que que você não reagiu?'”. O professor respondeu que não sabia que havia som.

Com isso, surgiu o interesse acadêmico pelo assunto, já que Jessyka procurava um tema para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). “Eu posso pesquisar dentro de jogos, com libras. É uma área que não tem. E é uma área que eu tenho afinidade”, disse.

Nas pesquisas, Jessyka encontrou em uma rede social um grupo de jogadores surdos. Eles estavam participam de um campeonato de “League of Legends” e ela se ofereceu para ser intérprete. Isso foi em 2017. Desde então, foram outros sete campeonatos e outros cinco jogos diferentes.

“É muito bom ver que os campeonatos e as empresas estão se preocupando com isso, com o público surdo. E não só o público surdo porque quando você traz um tipo de recurso de acessibilidade, você também mostra para a sua comunidade que existem pessoas com deficiência dentro do cenário e que elas precisam de recursos acessíveis e que também têm o direito de jogar”, disse.

Como funciona a atuação do intérprete de libras em campeonatos

Jessyka explicou que o intérprete de libras atua antes e depois das partidas, na maioria das vezes. Mas, para se chegar a essa fórmula, foram necessários alguns testes e pedidos de feedback.

“Primeiro, a gente testou intérprete de libras durante todo o campeonato, tanto pré-jogo quanto pós-jogo. E os próprios surdos falaram ‘oh, durante os jogos, não é legal ter intérprete de libras, porque fica muita informação visual'”, relatou.

Em jogos mais parados, em que os jogares teriam tempo de olhar para o intéprete e também ver o que está acontecendo na tela, não seria um problema. Porém, a maioria dos títulos competitivos exigem bastante atenção. Ela citou o exemplo dos jogos de tiro em primeira pessoa.

“É tudo muito rápido. Se você piscar, olhar para o lado errado, você já perdeu alguma informação. Então, eles [surdos] preferem que, durante os jogos, durante as partidas não tenha o intérprete de libras”, explicou.

Assim, o profissional atua no pré-jogo, apresentando os times e as regras, e após a partida, falando sobre o resultado e fazendo análise. O intérprete tanto pode fazer a tradução para libras de algo que está sendo dito por outra pessoa quanto pode fazer a narração.

Jessyka explicou que todos os jogos podem ter interpretação da língua de sinais, porém depende da organização do campeonato decidir se vai contratar esse profissional.

Além de “League of Legends”, já houve competições de games de diferentes gêneros com interpretação de libras, como os títulos de tiro em terceira pessoa “Fortnite e Free Fire”, o jogo de cartas “Hearthstone”, o de estratégia “Clash” e os de tiro em primeira pessoa “Counter-Strike”: “Global Offensive “(CS: GO) e “Valorant”.

A estudante de biblioteconomia da UFSC Mariana Solano, de 20 anos, que é surda-oralizada (fala em português), afirmou que um intérprete traz uma qualidade muito melhor em relação às legendas automáticas para as pessoas com alguma deficiência auditiva.

“Tem muita diferença. A legenda automática acaba puxando palavras nada a ver com o contexto e acaba tudo embaralhado. Mas com um intérprete… ele não é um robô, ele é uma pessoa. Então, além de pegar as palavras certas para a gente, em versão de sinal, ele também faz uma ótima interpretação porque a libras é uma língua da cultura surda”, disse.

Mariana, que também já participou de um campeonato de League of Legends, afirmou que o intérprete também ajuda a trazer elementos para um melhor entendimento por parte das pessoas com alguma deficiência auditiva, não é uma simples tradução.

“A cultura surda tem suas próprias piadas e entendimento. Aquelas frases que são ambíguas, o surdo não vai entender. O intérprete faz entender. Vai explicar de outra forma ou usar exemplo semelhante. Isso é muito legal”, diz Mariana.

Outro jogador que também participou do campeonato é Guilherme Andariola, de 23 anos, que estuda ciências da computação na UFSC. Ele contou que a interpretação em libras torna tudo mais divertido para quem tem alguma deficiência auditiva. Ele é surdo e usa a linguagem de sinais para se comunicar.

“Com o intérprete de libras, eu consigo acompanhar. Então, por exemplo, fica mais empolgante a questão da gente conseguir assistir aos jogos, fica bem, bem mais legal”, relatou.

Gulherme quer se jogador profissional e está otimista com o que está por vir em termos de acessibilidade.

“Eu acredito que no futuro a gente vai ter, por exemplo, a gente vai encontrar locais com intérprete de libras, que antigamente não tinha, a gente não via, não tinha nada em libras. Também campeonatos, não tinham em libras. Agora está começando uma coisa nova, né? É bem inovador, eu estou gostando bastante”, declarou.

“Também estão aparecendo novas pessoas com deficiência, por exemplo, cadeirantes, participando. Por isso que a gente precisa se unir. Para, no futuro, a gente lutar, todo mundo junto pelo nosso movimento, pelas nossas conquistas”, resumiu.

Dicas para ser intérprete

Para quem quiser seguir o caminho da interpretação de libras em campeonatos de games, Jessyka aconselha:

“Para você ser um intérprete de libras, você precisa ter o bacharel em libras e, principalmente, assim, o primordial: precisa ter contato com pessoas surdas. Você precisa estar na comunidade surda, precisa conhecer a comunidade surda. Eu falo isso, parece muito óbvio, mas não é. Tem alguns intérpretes que eles sabem libras e só. E pra você entregar uma boa qualidade do seu trabalho, você precisa saber o que a comunidade surda quer”.

Além disso, ela destacou também o conhecimento específico. “Para você atuar dentro do eSports, você precisa jogar. Você precisa saber o jogo que você vai estar interpretando”, resumiu.

Fonte: Pop & Arte