‘Fundação’ troca temas ricos do livro clássico de ficção científica por aventura espacial genérica | TV e Séries


Para quem nunca leu o clássico de ficção científica de Isaac Asimov, “Fundação” pode ser uma belíssima nova série. Com produção de nível cinematográfico, ela seduz com locações e designs, com o perdão do trocadilho, de outro mundo.

Infelizmente, fãs do livro de mesmo nome que aguardam há décadas uma versão da obra, considerada por muitos como inadaptável, talvez precisem esperar um pouco mais.

A produção, que estreia os dois primeiros de sua temporada com dez capítulos nesta sexta-feira (24) na Apple TV+, se afasta dos temas ricos da história original em uma busca desnecessária por mais ação, que a transformam em mais uma aventura espacial genérica.

Há exceções importantes, como a já mencionada excelência técnica e um ótimo elenco com nomes conhecidos e figuras novas, mas um início empolgante logo dá lugar a momentos previsíveis e personagens pouco inspirados.

Claramente o resultado conseguido por mentes que até admiram a obra de um dos maiores escritores do gênero de todos os tempos, mas que talvez não tenham entendido tão bem os motivos de seu sucesso.

Assista ao trailer de

Assista ao trailer de ‘Fundação’

O mais triste é que “Fundação” começa bem demais. O primeiro episódio atende a todos os pontos que fãs do livro de 1951, o primeiro de uma trilogia posteriormente estendida pelo autor, sempre quiseram.

E deve agradar também quem nunca ouviu falar do americano na nascido na Rússia (por mais que seus livros tenham gerado adaptações como “O homem bicentenário” e “Eu, robô”).

A abertura da série costura com maestria os principais temas do livro, adaptando em medida necessária – e absolutamente compreensível – pontos da trama que não funcionariam na transição de mídias.

Em “Fundação”, a humanidade se espalhou por toda a galáxia ao longo de milênios. Tanto que ninguém nem sabe ao certo seu ponto de origem.

Acima dos trilhões de habitantes de incontáveis planetas está o Império, responsável pelo delicado equilíbrio de toda a existência.

Lou Llobell e Jared Harris em cena de ‘Fundação’ — Foto: Divulgação

É compreensível, então, que a presença na capital de um professor influente, Hari Seldon (Jared Harris), e suas teorias sobre a queda da dinastia e uma provável era de caos e conflitos, seja vista como ameaça.

O problema é que as chances que ele esteja certo são reais. Principal estudioso de uma ciência conhecida como psico-história, ele utiliza matemática para encontrar padrões em grandes populações. Quanto maior o grupo, maior sua precisão – e parece que trilhões, potencialmente até mais, formam um grupo bem grande.

Ele prevê que em poucos séculos o Império será fragmentado, assim como aconteceu antes com outras organizações poderosas. O resultado será 30 mil anos de trevas.

A decadência é inevitável, mas ele tem um plano. Caso lhe deem a chance de formar a Fundação, uma instituição com o intuito de reunir todo o conhecimento da humanidade em uma enciclopédia, esse longo período pode durar apenas um milênio.

Cooper Carter, Lee Pace e Terrence Mann em cena de ‘Fundação’ — Foto: Divulgação

Foi com medo de errar que acabou errando

Tudo isso se desenvolve ainda no primeiro episódio. A descrição acima parece complicada, mas é apresentada com uma desenvoltura invejável pelo criador, roteirista e responsável pela série, David S. Goyer (que tem alguns créditos impressionantes na carreira, como o roteiro de “Batman: O Cavaleiro das Trevas”, e outros mais preocupantes, como a história de “Batman vs Superman: A Origem da Justiça”).

Mudanças em relação ao livro não só não incomodam, mas são bem-vindas. Personagens importantes do livro, protagonizado na maior parte por homens, trocam de gênero e dão oportunidade a novos rostos competentes como os das atrizes Lou Llobell e Leah Harvey conduzirem bem a história.

Além disso, a introdução de um triunvirato no comando do Império, formado por clones de um líder morto há séculos, permite a escalação e permanência de Lee Pace (“Guardiões da Galáxia”), de longe uma das forças mais magnéticas do elenco.

Se ficassem nisso, estaria tudo muito bem. Infelizmente não é o caso. A partir do segundo capítulo, crescem as concessões da história a pontos comuns de aventuras espaciais padrão.

Aos poucos, debates como a teimosia dos poderosos em virar os olhos para alertas dados por especialistas (que ecoam ainda mais alto em um Brasil durante pandemia), dão lugar a tiros e lutas.

Como se isso não fosse o bastante, personagens ricos como Salvor Hardin, um herói improvável com seu jeitão manipulador e arrogante, é diluído em uma guardiã boazinha e boa de briga. Harvey faz o que pode e impede o pior, mas o enfraquecimento é gritante.

Nem é preciso um olhar tão atento para ver refletidas na trama as exigências de executivos, preocupados que uma narrativa com pouca ação talvez aliene espectadores.

Mas não deixa de ser muito triste observar impotente a mudança, em especial depois de uma abertura com equilíbrio excelente, prova maior de que nada disso era necessário.

O livro não precisou disso. A série também não precisava. Uma pena que a ousadia fique limitada ao orçamento. E “Fundação” continua inadaptável.

Leah Harvey em cena de ‘Fundação’ — Foto: Divulgação



Fonte: Pop & Arte