“É um show carioca. Viva o Rio de Janeiro!”, saudou Zé Renato no palco do Teatro Riachuelo, no centro da cidade do Rio de Janeiro (RJ), após cantar o samba Diz que fui por aí (Zé Kétti e Hortênsio Rocha, 1964). De fato, o show Bebedouro pintou aquarela carioca de sons e ritmos que serviram de fonte para este cantor, compositor e músico de origem capixaba, mas que, pela vivência musical, pode ser considerado natural do Rio de Janeiro (RJ).
Tão natural como A voz do morro (Zé Kétti, 1955), samba com o qual o artista – visto ao alto em foto de divulgação de Marcelo Castello Branco – encerrou show primoroso, irretocável, feito na noite de ontem, 3 de abril, com a adesão do parceiro carioca João Cavalcanti e com seis músicos excepcionais que tiraram sons típicos de big-band com o reforço do próprio Zé Renato, que se alternou no toque do violão e da guitarra eletroacústica.
No palco, todas as cores dessa aquarela carioca ficaram vivas, fazendo com que o repertório autoral do já ótimo álbum Bebedouro, lançado em janeiro deste ano de 2018, soasse ainda mais refinado.
Zé Renato no show ‘Bebedouro’ — Foto: Divulgação / Marcelo Castello Branco
Zé Renato foi na fonte ao montar o repertório do show Bebedouro, retratando a pluralidade dos sons cariocas em roteiro que partiu do suingue black rio de Agogô (Zé Renato e Moacyr Luz, 2018) – samba-rock alocado na abertura da apresentação – e que passou pela bossa eternamente moderna do cancioneiro de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) e Vinicius de Moraes (1913 – 1980), representado no roteiro pela perfeição melódica e poética da canção O amor em paz (1960).
Nessa rota, o samba do morro se amalgamou com o samba mais íntimo das boates, como exemplificou o arranjo feito pelo pianista Cristovão Bastos para o já mencionado samba Diz que fui por aí. Dentro dessa geografia musical carioca, o samba Sacopenapan (2018) contornou bairros como Copacabana e Humaitá, situando as vivências na cidade de Joyce Moreno e Zé Renato, parceiros no tema e também em outro samba, Noite (2018), cujo majestoso arranjo evidenciou o balanço do trio de metais.
Sem afrouxar o conceito do show, Zé Renato rompeu os limites das águas do disco Bebedouro para ir na fonte rica do compositor carioca Edu Lobo, de cujo repertório Zé reavivou Uma vez, um caso (Edu Lobo e Cacaso, 1976) em número antecedido por citação de Repente (Edu Lobo e José Carlos Capinam, 1976).
Outra fonte que jorrou límpida na estreia carioca do show Bebedouro foi a música do compositor Egberto Gismonti, de quem Zé cantou lindamente Ano zero (Egberto Gismonti e Geraldo Carneiro, 1972), reiterando habilidade como intérprete que ficou ainda explicitada quando o cantor deu voz à canção Carinhosa (2017) – apagando a má primeira impressão dessa parceria com Otto, (mal) gravada pelo artista pernambucano em disco do ano passado – e sobretudo quando, momentos depois, Zé interpretou Dentro de mim mora um anjo (Sueli Costa e Cacaso, 1975) e Toada (Na direção do dia) (Zé Renato, Claudio Nucci e Juca Filho, 1978).
Este hit do grupo vocal Boca Livre poderia ter soado batido, como concessão ao público, mas se renovou no sopro cool e minimalista de um trompete, a ponto de se impor como um dos pontos mais altos de show que transcorreu sem baixos.
João Cavalcanti e Zé Renato no show ‘Bebedouro’ — Foto: Divulgação / Marcelo Castello Branco
Entre acertos sucessivos, merece menção honrosa a saudável ousadia de Zé de cantar (bem) o sucesso mais recente de Chico Buarque, Tua cantiga (2017), somente com o toque do piano de Cristovão Bastos, parceiro de Chico nessa cantiga que se situa entre a modinha e o lundu. Mesmo quando navegou em outros mares, como na morna Náufrago (Zé Renato e Nei Lopes, 2018), Zé Renato pareceu estar em águas cariocas.
Tudo fluiu com precisão no palco, seja a simplicidade e a leveza que pautaram Vamos curtir o amor (2018), parceria com o novo baiano Moraes Moreira, seja a interiorização de Samba e nada mais, número feito com o parceiro João Cavalcanti em dueto harmonioso que se estendeu em Mulato (João Cavalcanti, 2012).
Engrandecido na apresentação carioca de ontem pelo toque de músicos como o baixista Jamil Joanes e o saxofonista Zé Nogueira, integrantes da banda que fez emergir Amphibious (Moacir Santos, 1974) em número instrumental, o show Bebedouro resultou excepcional, reiterando o grande momento artístico de Zé Renato como cantor e compositor. (Cotação: * * * * *)
Zé Renato no show ‘Bebedouro’ — Foto: Divulgação / Marcelo Castello Branco
Eis o roteiro seguido em 3 de abril de 2018 por Zé Renato na estreia carioca do show Bebedouro no Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro (RJ):
1. Agogô (Zé Renato e Moacyr Luz, 2018)
2. Sacopenapan (Zé Renato e Joyce Moreno, 2018)
3. Noite (Zé Renato e Joyce Moreno, 2018)
4. Ano zero (Egberto Gismonti e Geraldo Carneiro, 1972)
5. Repente (Edu Lobo e José Carlos Capinam, 1976)
6. Uma vez, um caso (Edu Lobo e Cacaso, 1976)
7. Carinhosa (Zé Renato e Otto, 2017)
8. Vamos curtir o amor (Zé Renato e Moraes Moreira, 2018)
9. Agora e sempre (Zé Renato e José Carlos Capinam, 2018)
10. Diz que fui por aí (Zé Kétti e Hortênsio Rocha, 1964)
11. Samba e nada (Zé Renato e João Cavalcanti, 2018) – com João Cavalcanti
12. Mulato (João Cavalcanti, 2012) – com João Cavalcanti
13. Dentro de mim mora um anjo (Sueli Costa e Cacaso, 1975)
14. Toada (Na direção do dia) (Zé Renato, Claudio Nucci e Juca Filho, 1978)
15. O amor em paz (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1960)
16. Tua cantiga (Cristovão Bastos e Chico Buarque, 2017)
17. Amphibious (Moacir Santos, 1974) – números instrumental da banda
18. Navegantes (Zé Renato e Nei Lopes, 2018)
19. Ânima (Zé Renato e Milton Nascimento, 1982)
20. Pedra de mar (Zé Renato e Paulo César Pinheiro, 2018) /
21. Fonte de rei (Zé Renato e Paulo César Pinheiro, 2018)
22. Agogô (Zé Renato e Moacyr Luz, 2018) /
23. A voz do morro (Zé Kétti, 1965) – com João Cavalcanti
24. Noite (Zé Renato e Joyce Moreno, 2018) – com João Cavalcanti