As universidades federais têm um déficit de pelo menos 11 mil professores e servidores técnico-administrativos. São vagas para atender à demanda de graduações criadas na última década, como de medicina, ou à expansão de cursos já existentes, mas os cargos não foram autorizados pelo governo federal. Com as lacunas, as instituições suspendem aulas, convocam docentes voluntários, deslocam professores de um câmpus a outro e relatam dificuldades para usar laboratórios.
A informação sobre o déficit de cargos consta de nota técnica do MEC (Ministério da Educação) enviada no fim de maio à Economia. No documento, obtido pelo Estadão, a pasta calcula que, dos 8.373 cargos de docentes prometidos às universidades, só 4.644 foram de fato autorizados (déficit de 3.729). Em relação aos técnicos, responsáveis por laboratórios e bibliotecas, por exemplo, o problema é ainda maior: 7.273 cargos. No total, a rede federal tem 95 mil professores e 102 mil técnicos.
A falta de pessoal fica evidente sobretudo após a metade dos cursos, quando há mais demanda por professores especialistas. O Estadão ouviu dirigentes de oito federais em todas as regiões do País, que dizem fazer “malabarismos”.
Nos últimos anos, as universidades sofrem com o corte do orçamento de custeio, usado para contas de energia ou limpeza, o que reduz ainda a margem para contratar terceirizados, também pagos com essa verba. Neste mês, a gestão Jair Bolsonaro (PL) bloqueou R$ 1,6 bilhão do MEC – o governo é criticado por não poupar a educação nos cortes de recursos. Mas liberou, em maio, 1.250 vagas para a Polícia Federal e a Rodoviária Federal.
“Temos um gargalo enorme, déficit de mais de 30 professores na Medicina”, diz Joana Angélica Guimarães da Luz, reitora da UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia), criada em 2013. Segundo ela, só houve liberação de cargos até 2017. O déficit total de 300 docentes na UFSB obriga Joana e todos os pró-reitores a dar aula. Ela, por exemplo, leciona Estatística e também cuida das tarefas administrativas da universidade.
Na UFSB, aulas práticas de atendimento ambulatorial, que deveriam ser realizadas em grupos menores, têm quase o dobro de alunos, diz o aluno de Medicina Paulo Ricardo Freitas, de 25 anos. Segundo ele, a última turma foi para o internato (período do curso em que é previsto atendimento a pacientes) tendo treinado intubação uma só vez. O jovem, de Brumado, sertão baiano, quer voltar com o diploma para atender a cidade natal, mas teme pela qualidade da formação.
Uma das metas para a educação no Brasil, fixada em lei, é ter 33% dos jovens matriculados no ensino superior até 2024, hoje, a taxa é de 23,8%. A partir de 2003, a rede federal passou por expansão de vagas. Outro foco foi interiorizar, com a criação de universidades e câmpus fora dos grandes centros. O número de instituições saltou de 45, em 2002, para as atuais 69, mas isso não foi proporcionalmente acompanhado de verba e de pessoal.
Nas chamadas universidades supernovas, criadas em 2018 e 2019, o problema se repete. Na UFCAT (Universidade Federal de Catalão), em Goiás, o ano começou com balde de água fria para os alunos: foram suspensas as classes regulares na Medicina por dois meses e meio no período, os alunos tiveram aulas de temas transversais, nem todos ligados diretamente à formação médica até que fossem feitos os ajustes.
Das 60 vagas de professores que haviam sido combinadas entre UFCAT e Ministério da Educação para a medicina, a universidade só havia recebido 20, de acordo com a reitoria. Após pedidos, foram liberadas mais 15. Ainda assim, alunos têm buracos na agenda: as quartas-feiras de Natália Marques, de 25 anos, que deveriam ter aulas de Medicina da Família, estão vazias. “As lacunas preocupam porque a gente pensa: lá na frente isso pode prejudicar um paciente meu?”, indaga ela, que preside o centro acadêmico.
Há até professores voluntários: em geral, profissionais da região com formação na área que topam dar aula de graça na graduação. Em troca, eles põem a experiência no currículo, mas o vínculo é frágil. Além de ensinar, o docente universitário atua em pesquisa e projetos externos o que voluntários não fazem. “Estamos em condição extremamente precária de funcionamento, com mau atendimento ao aluno”, afirma Roselma Lucchese, reitora pro tempore da UFCAT.
Conforme admite o MEC na nota técnica, federais criadas em 2018 e 2019, como a UFCAT, teriam de receber 610 docentes e 1.666 técnicos, cargos ainda em débito. A demanda, diz a nota, é para garantir “minimamente o funcionamento” em 2023.
Na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), uma das melhores do país, o problema ficou evidente na medicina do câmpus Araranguá, sul do Estado. O curso foi criado no programa Mais Médicos de 2013, na gestão Dilma Rousseff (PT), para elevar o total de profissionais de saúde no Brasil.
Novas turmas entravam, mas as cadeiras de professores continuavam vazias. “Uma conta que não fechava”, resume Pietro Casagrande, de 22 anos, aluno do 4.º ano. A previsão de ter só uma hora de aula semanal fez um grupo de alunos ir ao Ministério Público Federal em 2021. Os estudantes conseguiram contratações, mas cursos com menos visibilidade continuam com lacunas, diz o pró-reitor de Graduação da UFSC, Daniel Vasconcelos. A situação é pior nos câmpus de Blumenau e Curitibanos. Na UFPR (Universidade Federal do Paraná), há falta de 33 docentes e 132 técnicos, segundo a reitoria, principalmente fora da sede.
Já os professores contratados têm sobrecarga. Na Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), docentes do câmpus de Marabá enfrentam jornada de 500 km, em 12 horas de estrada, para cobrir ausências em São Félix do Xingu. Como a viagem é longa, ficam 15 dias na cidade e ensinam a matéria “blocada”, de uma só vez, conta o reitor Francisco Ribeiro da Costa. Similar ao que ocorre na Ufob (Universidade Federal do Oeste da Bahia), onde também faltam professores, sobretudo para os anos finais de direito, que exigem prática jurídica.
E, com o apagão de técnicos, os próprios professores da Unifesspa fizeram curso para montar as lâminas usadas nas práticas de Geologia. Na Federal do ABC, em Santo André, embora não haja déficit de docentes, professores e alunos de pós-graduação assumem tarefas de manutenção de laboratórios, o que prejudica a pesquisa.
O Estadão procurou o MEC, mas não obteve resposta. Já a pasta da Economia diz não comentar “demandas relacionadas a processos seletivos encaminhadas pelos órgãos da administração pública federal”. As gestões Dilma e Michel Temer (MDB) não falaram.
Sem simpatia pelo setor
Segundo o sociólogo Simon Schwartzman, da Academia Brasileira de Ciências, o déficit tem origem na expansão “acelerada” da rede, sobretudo em gestões petistas. “Veio a crise econômica, não houve recursos, as contratações não foram feitas. E este governo não tem nenhuma simpatia pelo sistema universitário”, diz. Além dos cortes de verba, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub já disse que havia “balbúrdia” em federais e criticou os salários de docentes. Mas Schwartzman alerta que, mesmo se a demanda é herdada de outras gestões, “é responsabilidade do governo lidar com isso.” Para o especialista, viabilizar modelos de contratação mais flexíveis, com carga horária menor, poderia ajudar.
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Fonte: Fonte: R7