Modelos pré-prontos de redação do Enem são vendidos por R$ 50 e podem ser cilada; ‘Levei um baque com a minha nota’, diz aluna




Textos, em tese, serviriam para qualquer assunto cobrado na prova — bastaria que o aluno preenchesse lacunas com o tema. g1 encontrou exemplos com erros de ortografia ou com citações que não teriam funcionado nos exames de 2022 e 2023. Já ensinava Sócrates: “Os erros são consequência da ignorância humana”. Logo, é válido analisar as causas da ___invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher___ no Brasil.
Já ensinava Sócrates: “Os erros são consequência da ignorância humana”. Logo, é válido analisar as causas da ___desvalorização das comunidades e povos tradicionais___ do Brasil.
➡️Os dois trechos acima foram escritos com base em um modelo pronto de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O candidato que compra esse tipo de texto na internet (por até R$ 50) tenta memorizá-lo e, no dia da prova, preenche as lacunas com o tema pedido na edição (nos exemplos acima, foram os de 2022 e 2023).
Em tese, os modelos pré-fabricados cumpririam os principais requisitos e serviriam para qualquer assunto escolhido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Mas será que, na prática, eles realmente funcionam e garantem uma boa nota? Não seria essa uma tática arriscada a ser adotada pelos candidatos? Leia a reportagem abaixo.
Anúncio de modelos prontos de redação do Enem na internet
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“Trabalho diariamente com Enem há 7 anos e reconheço, de cara, quando a redação veio desses ‘modelos’. É uma receita de bolo. Em geral, esses alunos começam o texto falando da Constituição e terminam responsabilizando o poder público pelo problema. Dá para identificar na hora”, diz Felipe da Costa Rico, professor do cursinho Redação Nota 1.000.
✏️Do ponto de vista pedagógico, é um desastre, afirmam especialistas ouvidos pelo g1. Normalmente, os alunos:
não desenvolvem a habilidade de argumentação e de articulação de ideias;
chegam à faculdade sem conseguir escrever um artigo simples;
prestam outros vestibulares, que exigem redações diferentes (como o da Unicamp ou da Fuvest), e ficam “travados”;
têm dificuldade de adaptar os modelos, dependendo do tema, e acabam produzindo um texto sem coerência.
📢Por outro lado, os atuais critérios de correção do Enem valorizam mais o formato da dissertação do que a profundidade dos argumentos, na opinião de professores. Isso acaba incentivando os candidatos a comprar “fórmulas prontas” ou a procurá-las gratuitamente em e-books e nas redes sociais.
Além disso, não há, nas regras do Inep, uma penalização prevista caso dois ou mais estudantes entreguem textos basicamente iguais.
“Não é raro encontrar redações nota mil que não têm conteúdo aprofundado. Mas, como trazem uma estrutura correta e desenvolvem minimamente uma ideia, são bem avaliadas”, diz Thiago Braga, professor de língua portuguesa do Colégio pH (RJ).
“Infelizmente, percebemos que o Enem criou uma fórmula que, se seguida minimamente, traz uma boa nota. É triste constatar que textos com bons argumentos podem receber notas menores, só porque não estão nesse formato ‘formulaico’.”
➡️Ao g1, o Inep afirma que “o critério ‘criatividade’ não é objeto de avaliação do exame, pois não faz parte do construto julgado na prova de redação”. Diz também que os textos dissertativos “possuem um rol limitado de características formais. Eventualmente, isso pode motivar atividades didáticas que visem ao domínio de tais características”.
Mais abaixo, leia sobre:
os motivos pelos quais os alunos recorrem aos modelos pré-prontos;
os riscos de seguir essa tática;
a forma mais indicada de se preparar para a redação.
🖨️Por que os alunos recorrem aos modelos pré-prontos?
As principais razões são:
busca por uma solução mais rápida e imediata, quando comparada ao método tradicional de estudos;
dificuldade de alcançar um bom desempenho em redações originais;
tentativa de poupar tempo no dia da prova, para dedicar mais atenção às 90 questões.
Em Primavera do Leste (MT), o estudante Luiz Henrique, de 18 anos, usará um desses modelos no Enem 2024, para disputar uma vaga em administração.
“Peguei [o ‘molde’] com a minha amiga; ela achou na Internet. [Essa estratégia] acaba me ajudando a ter uma base para o texto, porque geralmente não vou bem na conclusão da redação”, diz. “Mas meu sonho é prestar medicina. Aí, em curso concorrido, acho que os modelos não dariam certo.”
Vamos testar como ficaria o último parágrafo da dissertação no Enem 2023, usando como base uma dessas “receitas”:
Molde: A fim de solucionar esse empasse [o certo é “impasse”; a palavra estava escrita de maneira errada no modelo], é necessária a mobilização de certos agentes implicados em (problema social). Portanto, o (agente) deve (ação), por intermédio de (meio/modo), com (detalhamento). Como resultado dessa nova perspectiva, (indicar o que se realizaria – finalidade).
Preenchendo as lacunas com ideias simples (e corrigindo o erro de português):
Molde preenchido: A fim de solucionar esse impasse, é necessária a mobilização de certos agentes implicados na invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Portanto, o governo deve elaborar um programa de conscientização, por intermédio da imprensa e das redes sociais, com mensagens a respeito da importância da igualdade de gênero na divisão de tarefas. Como resultado dessa nova perspectiva, mães e esposas poderiam se sentir menos sobrecarregadas e mais valorizadas.
Perceba que o modelo pode até ajudar o aluno a não esquecer os elementos obrigatórios da conclusão (ação, agente, meio de execução, finalidade e detalhamento).
📢Mas de nada adiantará memorizar esse parágrafo caso o candidato não retome a tese que desenvolveu (ou deveria ter desenvolvido) ao longo do texto. Ele também deverá formular uma proposta que respeite os direitos humanos e que tenha relação direta com o tema. E, sem corrigir o erro de ortografia, poderia ainda ter sido penalizado na competência 1 (“Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa”).
📈Quais os riscos de usar os modelos?
1- O tema pode não se encaixar.
Copiar apenas o molde da conclusão, como Luiz pretende fazer, traz riscos menores do que memorizar um texto pré-pronto inteiro.
Maria Eduarda Dal Pozzo, de Guarapuava (PR), decorou um desses modelos completos para o Enem do ano passado… e ficou decepcionada com a sua nota: 680.
“Levei um baque. Não adiantou nada ter usado essa estratégia, porque faltava a argumentação. O tema não se encaixava. Para este ano, preferi fazer aulas de redação e estudar a estrutura do Enem, sem decorar nada. Já melhorei muito e consegui criar um repertório”, conta a jovem.
Na prova, é esperado que o aluno demonstre referências socioculturais e cite, por exemplo, filósofos, filmes, livros, séries ou documentários ao longo de seu texto. E nem sempre o modelo pré-pronto trará exemplos que tenham alguma conexão com o tema daquele ano.
“O candidato acaba usando Platão para falar de violência contra a mulher ou de inserção de surdos na sociedade. Não adianta: precisa ter a ver com o assunto cobrado. Se não for algo pertinente, vai haver penalização na competência 2 [que avalia a mobilização do repertório para a construção da argumentação]”, afirma Renato Fonseca, professor de redação do Cursinho da Poli (SP).
Outro teste, com base em mais um modelo pré-pronto:
Modelo pré-pronto vendido na internet
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“De acordo com Nicolau Maquiavel, no livro “O Príncipe”, para se manter no poder, o Governo deve operar tendo como objetivo o bem universal. Entretanto, é notório que, no Brasil, ___a democratização do acesso ao cinema no Brasil (tema do Enem 2019) ___ rompe com essa paridade, uma vez que prejudica o avanço social brasileiro e afeta a população no dia a dia.”
Perceba que o aluno que não fizesse os devidos ajustes escreveria, sem querer, que a democratização prejudica o avanço social brasileiro.
➡️Observação: Os próprios temas têm sido mais complexos nos últimos anos — em 2013, os alunos tiveram de escrever sobre os efeitos da Lei Seca; em 2023, sobre os “desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.
“É uma forma de criar um filtro e superar essas fórmulas prontas, para avaliar a competência argumentativa do aluno”, diz Fonseca.
2- O aluno deixa de mostrar seus próprios argumentos e fica “preso” ao que decorou.
No parágrafo citado mais acima, mencionando Maquiavel, é bem possível que o estudante fosse capaz de apresentar uma introdução mais coerente do que a que ele memorizou — ainda mais se considerarmos que o acesso ao cinema é um tema relativamente simples e próximo à realidade dos jovens.
“Nas redações de quem usou modelo, as ideias que ficam no início de cada parágrafo estão desconectadas do restante das ideias. É a principal evidência [de que houve cópia]”, diz Felipe Braga.
3- O candidato esquece uma parte do que memorizou e fica desestabilizado emocionalmente.
Nas redes sociais, a pouco mais de uma semana do Enem, há dezenas de estudantes postando frases como:
Initial plugin text
Initial plugin text
Initial plugin text
Initial plugin text
Se eles não se lembrarem do que memorizaram — e convenhamos que não é fácil decorar 30 linhas escritas por outra pessoa —, podem simplesmente “travar”. É preciso dominar a estrutura básica da dissertação e saber, por exemplo, que tipo de conteúdo deve aparecer em cada parágrafo.
Quem redigiu (de verdade) uma redação por mês, ao longo deste semestre, dificilmente esquecerá como fazer uma introdução nos padrões do Enem. A “decoreba” é sempre mais arriscada.
4- O resultado nas redações de outros vestibulares é muito ruim.
Cada processo seletivo tem seus próprios critérios de avaliação. O que serve para o Enem não se encaixa no vestibular da Universidade de São Paulo (USP) ou da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo.
Se o candidato estudar as estratégias de argumentação, desenvolver seu vocabulário, reforçar o repertório sociocultural e ficar bem informado a respeito do formato de cada prova, conseguirá demonstrar suas habilidades em todas as avaliações.
🤔O que fazer?
“A escrita de um texto não é uma ciência exata em que se aplica uma fórmula. Sempre vai ter de alterar algo no modelo, dependendo do tema”, explica Felipe Rico. “Por isso, é mais importante aprender a relacionar ideias e pesquisar sobre um assunto.”
Foque, portanto, em:
memorizar a estrutura geral de uma redação do Enem (quantos parágrafos, quais as partes essenciais), e não o texto corrido, por inteiro;
fortalecer o repertório sociocultural (dá para assistir a séries e filmes ou ler livros e entrevistas) para ter um leque de opções em mente, sem se ater apenas à que estava no modelo pré-pronto;
usar textos nota mil como inspiração, em vez de copiá-los.
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