Por que a Cufa interrompeu o uso de reconhecimento facial após polêmica | Tecnologia


A Central Única das Favelas (Cufa) anunciou na última segunda-feira (26) que interrompeu o uso de um sistema de reconhecimento facial que autenticava beneficiários cadastrados para o recebimento de doações.

A decisão foi tomada após repercussão negativa em rede social ao longo da segunda-feira.

Primeiro, Celso Athayde, fundador da Cufa, divulgou no Twitter que a ONG estava usando a tecnologia para cadastrar pessoas que receberiam cestas básicas.

A estudante de ciências da computação pela PUC-Rio Nina da Hora, que tem 27 mil seguidores nessa rede social, foi uma das primeiras a questionar sobre proteção dos dados.

Ela e outros ativistas e especialistas levantaram pontos relacionados a privacidade e preocupações com o uso da tecnologia, que tem um histórico de menor precisão em pessoas negras e de origem asiática, por exemplo.

Athayde apagou a postagem pouco depois. E, diante da repercussão, o atual presidente da Cufa, Preto Zezé, anunciou ainda na segunda que a entidade iria parar de usar o recurso e que todos os dados seriam apagados.

“Tudo cancelado. Inclusive, gerou um bom debate sobre segurança de dados, já que muitas organizações estão colhendo dados”, publicou Preto Zezé em seu perfil no Twitter.

A decisão foi elogiada por Nina e outros usuários. “A Cufa foi solícita em organizar e me ajudar a entender quais eram os objetivos e, de fato, entenderam que o caminho não era continuar. Eles estão fazendo um trabalho importante agora, durante a pandemia, e há mais de 20 anos”, disse Nina ao G1, nesta terça (27).

“Usar tecnologias de biometrias digitais em ONGs requer um olhar diferente do olhar (direcionado) para o mercado. Isto serviu para mostrar como o contexto das favelas é complexo para inserir tecnologias assim”, completou.

A Cufa afirmou ao G1, também nesta terça, que lançou mão do reconhecimento facial para garantir que as doações chegassem às pessoas corretas, a quem necessita. “Para tornar seguro o cadastro e distribuição de alimentos”, disse.

O recurso também era usado como um comprovante para as empresas doadoras. Nas redes sociais, a ONG afirmou que, a partir de agora, “só fará parceria com doadores que aceitarem as prestações de contas em forma de fotos e vídeos”, mas não detalhou como faria o tratamento dessas informações.

“Nenhum dado será solicitado a nenhum beneficiário e a transparência será garantida pela nossa palavra”, disse a Cufa.

A instituição decidiu voltar para o método tradicional papel e caneta, para não desviar a atenção do debate central: que é o combate à fome. Essa é a nossa prioridade atual”, conclui o comunicado enviado nesta terça.

A tecnologia de reconhecimento facial foi doada à central das favelas por uma empresa privada, que, segundo a Cufa, não exigiu contrapartida (leia mais ao fim da reportagem).

Todas as fotos foram tiradas com o devido aviso às pessoas, com a estrita finalidade de verificação de identidade”, disse a organização.

E o modelo de parceria adotada previa “que todos os dados das pessoas beneficiadas fossem deletados do banco de dados, ao fim do projeto”.

As informações biométricas são consideradas sensíveis pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

São dados que precisam de proteções adicionais para evitar vazamentos e consentimento do cidadão.

“A assinatura facial é um dado biométrico e é algo quase impossível de ser transformado – ao longo do tempo nossa assinatura facial muda, mas é um processo longo”, afirmou ao G1 José Renato, diretor do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN).

“Esse tipo de dado exige um cuidado muito grande”, afirmou Renato.

“Sinceramente, ainda acho estranho as leis permitirem algo do tipo sem questionamento a transparência de quem hoje está utilizando este tipo de tecnologia”, diz Nina da Hora.

A LGPD prevê que o compartilhamento desses dados “com o objetivo de obter vantagem econômica poderá ser vedado ou regulamentado pelas autoridades”.

O tema, porém, ainda não foi discutido pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que atualmente está formando o seu conselho.

Utilização durante a pandemia

O uso do reconhecimento facial pela Cufa teve repercussão na última segunda, mas a ONG utilizava a tecnologia pelo menos desde 2020. Ela era voltada ao projeto Mães da Favela.

Segundo a ONG, a empresa Unico (antes conhecida como Acesso Digital) doou uma plataforma exclusiva para a campanha.

“Optamos por uma empresa desvinculada de serviços de vigilância ou qualquer tipo de monitoramento destinado à segurança pública, justamente pela Cufa ser uma organização social atenta à vulnerabilidade das famílias assistidas”, afirmou a organização.

A Unico lista em seu site clientes como companhias do varejo e do setor bancário. Segundo a página, “60% dos brasileiros já foram impactados” com seus produtos e que mais de 5 milhões de faces são processadas todos os meses. A tecnologia é utilizada para identificar clientes e evitar fraudes.

O diretor do LAPIN levantou um questionamento sobre o uso dos dados.

“A gente não sabe o que está acontecendo com esses dados. Eles estão indo para quem? Será que não existe uma instrumentalização dessas pessoas que precisam das doações para que a empresa treine os seus algoritmos?”, afirmou José Renato.

Em comunicado ao G1, a Unico disse que segue a LGPD e não compartilha nenhum dado pessoal com outras empresas e que não houve contrapartidas pela doação da tecnologia, nem mesmo treinamento dos sistemas.

“A Unico não compartilha dados pessoais armazenados com clientes, governos ou outras empresas e não realiza vigilância ou qualquer tipo de monitoramento destinado à segurança pública”, afirmou a empresa.

A Unico confirmou que doou ao Mães da Favela uma plataforma própria, cuja base de dados seria apagada ao final da campanha.

“Dessa forma, a solução auxilia no processo de cadastramento, fazendo a validação – com autorização – das reais beneficiárias neste momento de crise de forma rápida e segura, evitando possíveis fraudes”, completou, em nota.

A empresa confirmou que a Cufa cancelou o uso da tecnologia e notificou a empresa para que a base seja deletada.



Fonte: G1