Os benefícios e riscos do ‘gaman’, a arte da perseverança que define o Japão | Mundo


O dia de trabalho em Tóquio geralmente começa com uma viagem pelo sistema de metrô mais movimentado do mundo.

Grande parte da população de 37 milhões de habitantes da região metropolitana toma os trens que cortam a capital do Japão todos os dias.

É uma tarefa estressante. Nas estações, passageiros apressados correm em todas as direções. Na plataforma, eles se agrupam em bloco nas laterais de cada uma das portas — para evitar obstruir a passagem dos que vão desembarcar — e, na sequência, tentam entrar o mais rápido possível no vagão, embora a multidão diminua a velocidade do processo.

Aqueles que conseguem embarcar se espremem a um ponto que dificulta qualquer movimento. Os pés às vezes não tocam o chão.

Mesmo nesses trens lotados, contudo, reina o silêncio resignado. O comportamento calmo e ordeiro é uma marca das multidões no Japão.

Quem vem de fora muitas vezes se surpreende com a paciência das pessoas em esperar pelo transporte. Mas não só: chama atenção também a forma como essa resiliência se manifesta em momentos de crise, como após o devastador terremoto e tsunami de Fukushima.

Todo esse esforço para manter a ordem externa tem nome no Japão: trata-se do “gaman”.

Terremoto e tsunami arrasaram a região de Fukushima em 2011 — Foto: Getty Images via BBC

Perseverança na dificuldade

De forma simplificada, é a ideia de que os indivíduos devem exercitar a paciência e a perseverança ao enfrentarem situações inesperadas ou difíceis pelo bem do coletivo.

O conceito implica um certo grau de autocontrole: você freia seus sentimentos para evitar o confronto. É um dever esperado da sociedade japonesa e visto como um sinal de maturidade.

David Slater, professor de antropologia e diretor do Instituto de Cultura Comparada da Universidade Sophia de Tóquio, descreve “gaman” como um conjunto de estratégias para lidar com eventos fora de nosso controle.

“Os indivíduos desenvolvem dentro de si a capacidade de perseverar e tolerar coisas inesperadas ou ruins, difíceis de superar”, diz ele.

Na raiz desse conceito, explica Noriko Odagiri, professora de psicologia clínica da Universidade Internacional de Tóquio, está o fato de que os japoneses valorizam que não se fale muito e a supressão de sentimentos negativos em relação aos outros.

‘Especialmente as mulheres, nós somos educadas para praticar o gaman o máximo possível’ — Foto: Getty Images via BBC

O treinamento começa cedo. As crianças aprendem pelo exemplo dos pais e, desde o ensino fundamental, também têm contato com os conceitos de paciência e perseverança, que faz parte do currículo escolar.

“Especialmente para as mulheres, nós somos educadas para praticar o ‘gaman’ o máximo possível”, diz Odagiri.

O “gaman” pode se manifestar no longo prazo, como a resiliência para permanecer em um trabalho desagradável ou tolerar um colega chato, ou no curto prazo, como ignorar um passageiro barulhento ou alguém que fura a fila.

Yoshie Takabayashi, 33, era ourives em Tóquio antes de se casar, se mudar para Kanazawa e ter filhos.

Questionada sobre quando usa “gaman”, ela cita sua vida após a maternidade e o fato de que não pode mais fazer algumas das coisas que costumavam lhe dar prazer. Ela também se lembra de um colega de trabalho desagradável que teve de bajular para conseguir fazer um treinamento importante, evitar problemas e manter seu emprego.

“Quando olho para trás, vejo que meu chefe não fez nada para ajudar. Eu deveria ter me demitido. Mas meus pais e os colegas que, assim como eu, tinham acabado de começar em um emprego novo, continuaram me incentivando a perseguir o sucesso. Não tinha percebido quanto ‘gaman’ eu tinha colocado nisso”, relata.

O ‘gaman’ pode se manifestar tanto no curto quanto no longo prazo — Foto: Getty Images via BBC

O “gaman” tem origem nos ensinamentos budistas sobre perseverança. Foi aprimorado durante o boom econômico do pós-guerra no Japão, quando o trabalho passou a ser visto como elemento de construção da nação — significando sacrificar o tempo com a família por longas horas no escritório.

Alguns veem a perseverança no estilo “gaman” como a característica definidora do Japão. “É o traço representativo do povo japonês, mas tem pontos positivos e negativos”, diz Nobuo Komiya, criminologista da Universidade Rissho, em Tóquio.

Komiya acredita que a vigilância mútua, o automonitoramento e as expectativas coletivas associadas ao “gaman” são um fator que contribui para a baixa taxa de criminalidade no Japão. Nos locais em que as pessoas cuidam umas das outras e evitam conflitos, a tendência é que a maioria seja mais cuidadosa com suas ações.

Mas não se trata apenas da dinâmica coletiva.

“O ‘gaman’, também tem benefícios a nível individual”, ressalta Komiya. “Significa não ser demitido ou colher os frutos por manter relações com as pessoas em seu entorno.”

Em paralelo, contudo, também pode ser um elemento de pressão sobre o indivíduo.

“Nós embelezamos o ‘gaman'”, pontua Odagiri. Muitas pessoas no Japão esperam que os outros adivinhem como elas se sentem em vez de expressar seus sentimentos de forma direta, o que pode ter consequências negativas importantes.

‘Gaman’ demais tem um impacto negativo na nossa saúde mental“, diz ela. “Às vezes, quando as pessoas retêm muita negatividade, o ‘gaman’ pode se converter em uma doença psicossomática.”

E procurar ajuda para melhorar a saúde mental é muitas vezes visto como fracasso, diz Odagiri, já que a sociedade muitas vezes espera que as pessoas resolvam por si mesmas. Nem todos conseguem fazer isso, entretanto, e o resultado pode levar a uma explosão de fúria que culmine em violência doméstica ou no ambiente de trabalho.

O “gaman” também pode acabar deixando as mulheres presas em casamentos infelizes.

“Nossa sociedade espera que as mulheres sejam caladas, humildes. Assim, muitas vezes as mulheres se esforçam para não demonstrar sentimentos negativos”, explica Odagiri.

E, quando decidem se divorciar, muitas descobrem que não conseguem, porque abriram mão de suas carreiras profissionais e não têm mais independência financeira.

Para Komiya, existe uma conexão entre o aumento recente de denúncias de assédio sexual e moral e o colapso de estruturas sociais ocasionado pela priorização do coletivo em detrimento do indivíduo.

“Os japoneses dizem que o ‘gaman’ é uma virtude nacional, mas na verdade é uma maneira de resguardar o coletivo”, ele afirma.

Hoje em dia, contudo, cada vez mais as pessoas se sentem menos propensas a serem censuradas por expressarem seus sentimentos. A sociedade, de fato, tem passado por mudanças. Há 30 anos, um emprego no Japão era para a vida inteira.

Tradicionalmente, os homens faziam longas jornadas para ganhar experiência na empresa em que trabalhariam por toda a carreira, enquanto as mulheres normalmente eram colocadas em posições longe dos cargos de liderança, para que, em teoria, saíssem do mercado de trabalho em algum momento para criar os filhos.

Esse sistema, contudo, hoje está em xeque pelas próprias mudanças na sociedade: as pessoas se casam mais tarde, mais mulheres estão trabalhando e a taxa de natalidade está no nível mais baixo da história.

Muitos jovens trabalham com contratos temporários ou em empregos de meio período, onde o “gaman” tem pouca serventia. “Eles não estão olhando para você como um membro intrínseco do grupo. Você é admitido e demitido, tem um contrato, é pago por hora”, diz Slater.

“Toda a ideia de ‘gaman’ aqui é completamente fora de lugar. Você manterá seu emprego se souber ficar calado, mas todos os valores do ‘gaman’ que regem a relações sociais duradouras não fazem mais sentido.”

É o que muitos jovens têm percebido, afastando-se, assim, dos caminhos trilhados pelas gerações anteriores.

Mami Matsunaga, 39, trabalhou na imprensa de moda antes de trocar Tóquio pela praia. Ela agora surfa todos os dias e ensina mindfulness, técnicas de respiração e ioga em retiros e workshops pelo Japão.

“Na cultura japonesa, a expectativa do ‘gaman’ pressiona todos a fazerem a mesma coisa e deixa pouco espaço para diferenças”, afirma.

Questionada se alguma vez perseverou no trabalho, responde: “Não, não perseverei. Sempre deixei o emprego se sentisse que precisava”.

VÍDEOS: as últimas notícias internacionais



Fonte:G1