‘Falta uma agenda de recuperação da economia’, diz Laura Carvalho | Economia


A economista Laura Carvalho avalia que o Brasil enfrenta uma grande incerteza com o rumo da pandemia de coronavírus e não tem uma agenda capaz de garantir uma recuperação robusta da atividade econômica.

Na avaliação dela, o novo boom das commodities até pode ajudar a economia brasileira, mas o país precisa desenvolver programas de investimentos e de transferências de renda para conseguir se beneficiar desse movimento global.

“A gente, nos anos 2000, usou de alguma forma esse cenário externo favorável, mas também houve uma série de políticas que contribuíram para uma expansão da economia brasileira: realizamos investimentos em infraestrutura e houve uma expansão de programa de transferência de renda”, afirma Laura, pesquisadora-líder do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da Universidade de São Paulo.

“De maneira geral, falta uma agenda de crescimento, de recuperação da economia”, diz.

A economista também destaca que um “aumento da tributação no topo da pirâmide”, por meio do próprio Imposto de Renda, poderia financiar um novo programa social, que ficaria entre o Bolsa Família e o Auxílio Emergencial.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Economista Laura Carvalho — Foto: Felipe Felizardo/Divulgação

  • Qual é o quadro que você espera para a economia brasileira em 2021?

Nós ainda estamos com uma incerteza muito grande relacionada não apenas ao controle da pandemia, à possibilidade de novas ondas, mas também ao ritmo de vacinação. O que parece é que o restante do mundo está numa trajetória um pouco mais segura de recuperação.

A gente tem um novo boom de commodities, que muitos consideram que é até tão forte quanto aquele que a gente viveu nos anos 2000. Isso pode nos ajudar em meio a uma situação que é ainda muito frágil, no que tange a economia doméstica, com uma política fiscal que não tem feito o trabalho de garantir a renda das famílias nessa situação ainda gravíssima de crise sanitária.

  • Qual é o impacto da pandemia na desigualdade social?

Os países com mais desigualdade tiveram mais dificuldade para controlar tanto a crise sanitária como os seus impactos econômicos. Além disso, o choque econômico e a natureza desse choque, causado pela pandemia, afetam desproporcionalmente os trabalhadores mais pobres e, com isso, agravam as desigualdades no mercado de trabalho.

  • Você poderia detalhar como se deu essa desigualdade no mercado de trabalho?

Os setores mais afetados são associados a serviços: turismo, restaurante, entretenimento, cultura. São setores que empregam muita gente e uma mão de obra relativamente menos escolarizada e, com isso, acabam levando a uma perda maior da renda para os trabalhadores que estão na base da pirâmide em relação à média da população.

Em 2020, um consenso se formou rapidamente em torno da necessidade de se realizar um grande esforço por parte do estado para colocar os recursos que eram necessários para o Auxílio Emergencial e para políticas de sobrevivência das empresas. Isso tudo fez com que a desigualdade em 2020 subisse do ponto de vista da renda do trabalho, mas não aumentasse quando a gente considerava também a renda obtida pelo auxílio, por exemplo.

  • Qual vai ser o impacto da queda do valor do auxílio no consumo das famílias e no resultado do PIB deste ano?

Em 2020, o auxílio de R$ 600, que depois se tornou de R$ 300, acabou evitando a perda de renda para metade da população brasileira mais pobre, na média. É claro que você pode ter pessoas que perderam renda dentro dessa metade mais pobre. Mas, quando a gente olha para os dados da Pnad Covid, a gente vê que a perda de renda dessa metade da população foi mais do que compensada pelo valor recebido via auxílio.

Em 2021, o Brasil passou meses sem nada, até ser aprovada uma prorrogação. Não há dúvida de que a gente está prejudicando a nossa capacidade de recuperar a economia neste ano por causa dessa insuficiência do valor do auxílio. E isso vai se mostrar ainda mais verdadeiro caso a gente passe por uma nova onda.

  • O que o país pode fazer para reduzir a desigualdade no longo prazo?

Há diversos estudos mostrando que o Brasil teria capacidade para expandir o sistema de proteção social, com um Bolsa Família ampliado, alguma coisa que tivesse entre o Auxílio Emergencial e o Bolsa família. Se a gente conseguisse ficar no meio, com um programa mais amplo, um pouco menos focalizado do que o Bolsa Família, mas, ao mesmo tempo, com um desenho mais permanente do que aquele que foi o auxílio, a gente teria a capacidade de lidar com os desafios que já vinham até de antes da pandemia.

É possível financiar com aumento da tributação no topo da pirâmide. E eu não estou nem me referindo ao imposto sobre grandes fortunas ou outros impostos sobre patrimônios. A própria tributação no Brasil não é tão progressiva, no sentindo de tão justa, quanto poderia ser. A gente ainda tem, no topo, muitas isenções que são dadas, deduções, por exemplo, para saúde e educação privada que beneficiam muito o topo da distribuição.

Haveria espaço para uma reforma nesse sistema de tributação, que poderia vir num pacote de ampliação das transferências de renda na base. É assim que isso tem sido pensado no resto do mundo: você tributa de maneira progressiva e universaliza essas políticas de renda mínima para a base da pirâmide.

Economista Laura Carvalho participa de Comissão de Assuntos Econômicos no Senado — Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

  • Tem espaço e viabilidade política para a aprovação de alguma das reformas no governo Bolsonaro?

Vai ser muito difícil aprovar algum tipo de reforma e me parece que, se for aprovada, será alguma coisa muito diferente do proposto e, possivelmente, com baixo impacto em termos de Orçamento. Eu acho que o cenário político não é favorável. A gente está no meio de uma crise sanitária e não acho nem que seria desejável que, nesse momento, a discussão se desse em torno dessas reformas estruturais.

O objetivo de uma reforma administrativa, por exemplo, é melhorar a qualidade do serviço público brasileiro, reestruturar carreiras, fazer com que aqueles que estão prestando os serviços para a população prestem da melhor maneira possível. Isso é o objetivo de uma reforma administrativa. Não deveria ser o de gerar R$ 1 bilhão ou quantos bilhões (de economia) no curtíssimo prazo. Quando a gente já trata as reformas de longo prazo dessa maneira, a gente costuma desviar dos seus verdadeiros objetivos.

  • Esse boom das commodities, ao qual você se referiu, ele deve se estender por muito tempo?

As análises apontam para um novo boom de commodities que pode, sim, durar. Há uma série de elementos para a gente prever um outro super ciclo das matérias-primas, que é como foi chamado aquele período nos anos 2000. A recuperação chinesa e os grandes estímulos e investimentos em infraestrutura nos Estados Unidos tendem a favorecer os preços dessas mercadorias.

  • Só isso vai ser suficiente para uma aceleração da economia?

Preços altos de commodities não significam, necessariamente, uma recuperação mais robusta da economia brasileira. A gente, nos anos 2000, usou de alguma forma esse cenário externo favorável, mas também houve uma série de políticas que contribuíram para uma expansão da economia: realizamos investimentos em infraestrutura e houve uma expansão dos programas de transferência de renda.

Em 2021 e 2022, esse boom de commodities virá, vai nos ajudar, mas ele também vem com políticas domésticas numa situação muito diferente, de elevação da dívida pública, com pouco espaço fiscal por conta das regras que foram colocadas, em particular o teto de gastos. O país não tem nenhum tipo de plano para investimento público, os programas de transferências de renda podem até ser expandidos, mas de maneira insuficiente para lidar com a vulnerabilidade dessa camada mais pobre da população. De maneira geral, falta uma agenda de crescimento econômico, de recuperação da economia.

  • Com todo esse quadro, de onde pode vir algum fôlego para o mercado de trabalho?

De fato, o crescimento puxado apenas por um boom de commodities é um tipo de recuperação com baixa geração de emprego. A gente sabe que os setores associados ao agronegócio não são muito intensivos em trabalho. Uma recuperação econômica que gera emprego, em particular, tem de passar necessariamente por uma recuperação do setor de serviços e da indústria. Mas, sobretudo, serviços. O setor de serviços realmente emprega, tem uma intensidade em trabalho maior. Se a gente olha para o passado da economia brasileira, os períodos em que chegamos mais próximos do pleno emprego foram aqueles em que os setores de serviços cresceram muito.

  • E serviços foi o setor mais afetado pela crise…

Para que o setor de serviços cresça, a gente precisa que a pandemia tenha acabado. Esse é um primeiro elemento. O controle da pandemia e o retorno das atividades de maneira segura são condições necessárias para a recuperação dos empregos de maneira mais robusta.

Para que as pessoas consumam serviços, a gente precisa que a renda esteja crescendo e que as desigualdades estejam caindo. Precisa de uma recuperação inclusiva. E para uma recuperação inclusiva, a gente precisa de uma agenda que passa pela expansão da proteção social e por investimentos em áreas prioritárias. Isso não está colocado hoje. Ao contrário de outros países, o Brasil não tem uma agenda de recuperação.

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Fonte: G1