Explosão na demanda, aperto na oferta: como a pandemia impactou o mercado de bicicletas no Brasil | Economia


O mercado brasileiro de bicicletas durante a pandemia vive uma contradição: aquecido, em meio a uma grande crise econômica, mas desabastecido.

O governo federal publicou na quarta-feira (18/02), no Diário Oficial da União, a redução da alíquota de importação de bicicletas. Desde 2011, as bicicletas estavam com imposto de importação elevado à taxa máxima permitida pela OMC (Organização Mundial do Comércio), 35%.

A diminuição será progressiva: a partir de março passa para 30%, em julho cai para 25% e, em dezembro, 20% – a alíquota base antes do veículo entrar na LETEC (Lista de Exceções à Tarifa Externa Comum).

“São dez anos de um instrumento que deveria ser temporário e que não produziu efeito de incentivar a produção nacional. Não faz sentido manter essa alíquota que é superior a itens como bebida alcoólica, por exemplo”, explica o diretor-executivo da Aliança Bike (Associação Brasileira do Setor de Bicicletas) Daniel Guth.

A associação participa de estudos e iniciativas junto ao Ministério da Economia para baratear o veículo, como a equiparação do IPI (Imposto sobre os Produtos Industrializados) das bicicletas elétricas com as bicicletas mecânicas convencionais, além da exclusão das bikes da LETEC

Para 2021, ainda há expectativa de que mais uma parte do custo da importação seja reduzido. A partir de abril, a TEC (Tarifa Externa Comum) será reduzida de 16 para 2% para câmbios e pinhões de roda livre, o K7 (conjunto de engrenagens que possibilita a troca de marchas nas bicicletas). “Esse foi um pleito que nasceu na Argentina e veio para o Mercosul. Fizemos um estudo técnico e apresentamos para o governo, mesmo assim o Brasil demorou dois anos para responder”, afirma Guth.

Na fábrica Oggi Bikes, toda a produção dos próximos seis meses já está vendida.

Segundo Daniel Douek, sócio-diretor da empresa, dependendo do modelo, a lista de espera pode chegar a 4 meses. “A procura aumentou tanto, que até hoje estou sem produto pra trabalhar direito. Em 12 anos de loja, nunca tinha visto isso”, conta o comerciante Wala Costa, de Porto Velho (RO), proprietário da Rondobikes.

Grande parte das peças que compõem uma bicicleta de qualquer marca no mundo é importada de países asiáticos, principalmente da China – que já tem uma cultura consolidada de uso do veículo.

Após os dois primeiros meses da pandemia no ano passado, houve um boom mundial de procura por novas bicicletas e de peças e acessórios. Com isso, os chineses não conseguiram dar conta nem de seu mercado interno.

Segundo a Abraciclo (Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares), no ano passado, as fabricantes de bicicletas instaladas no polo industrial de Manaus (AM) produziram um volume 27,7% menor do que o fabricado em 2019.

Em contrapartida, o aumento de vendas do veículo em 2020 foi, em média, de 50% em comparação a 2019, segundo levantamento realizado pela Aliança Bike, que ouviu centenas de lojistas, fabricantes e montadores de todo o país ao longo do ano passado e em janeiro de 2021.

Em julho, no pico de vendas, esse aumento chegou a 118%. Entre os modelos mais vendidos, as bicicletas de entrada – tanto urbanas, quanto mountain bikes aro 29″ -, com valores que variaram entre R$ 800 e R$ 2 mil.

O sócio e diretor comercial da Groove – fábrica localizada em Mococa (SP) -, Sérgio Gallo, afirma que hoje 64% do preço de uma bicicleta é imposto. “As fábricas de Manaus importam os mesmos componentes que a gente, mas nós não temos a isenção deles. A ideia da Zona Franca era incentivar a produção nacional, mas hoje todo mundo importa. E nós optamos por trabalhar de modo regionalizado, com atendimento mais próximo, no interior de São Paulo”.

Além da alta do dólar, o valor do frete marítimo durante a pandemia aumentou demais. Gallo diz que o contêiner que antes ele pagava US$ 1.200 para importar, agora custa US$ 8.000. “Um desafio para que os novos praticantes não desistam da modalidade é o preço da manutenção atualmente. O par da pastilhas de freio que antes custava R$ 80, hoje custa R$ 120, por exemplo”.

‘Momento não é de reduzir tributos’

As empresas que integram a Abraciclo defendem outras políticas para o setor. Cyro Gazola, CEO da Caloi e vice-presidente da Abraciclo, afirma que já há alternativas em planejamento. “Defendemos manter as regras do jogo, pelo menos, o momento atual não é de fazer alterações em tributos. As fábricas brasileiras, de Manaus, já estão preparadas para atender a demanda, mesmo se continuar crescendo”.

Gazola explica que 90% das bicicletas produzidas pela Caloi são brasileiras. “Nós temos insumos locais, como quadros de aço e alumínio, o que importamos são os produtos de carbono. Já estamos buscando alternativas para não depender tanto do mercado asiático, como sistemas de freios diferentes, ampliando leque de fornecedores, inclusive com brasileiros, reduzindo número de modelos e tentando evitar o repasse do aumento do custo ao consumidor”.

Outro fator que acabou atrapalhando a expansão do mercado neste ano é o modelo de negócio, normalmente familiar. “O mercado de bicicletas tem margem muito justa, os lojistas são adeptos do Simples nacional, empregam até quatro pessoas, são micro-empresas familiares, de gente apaixonada por bike. As grandes redes não são a realidade do mercado. Então, é um setor que não é de gente que quer sacanear o consumidor. A indústria brasileira é basicamente de montagem e quase tudo vem da Ásia”.

Talita Oliveira Noguchi, proprietária da Las Magrelas, uma oficina, loja de venda, acessórios e bicicletas de montagem própria (marca Babilônia), de Pinheiros (zona oeste de São Paulo), conta que só não teve seu negócio prejudicado porque conseguiu fazer estoque.

“No começo da pandemia nos outros países, eu notei que tinha alguma coisa errada porque peças básicas, como cubo, guidão e garfo, começaram a faltar. Sou eu e três funcionárias, não vendo tanta bicicleta, sou pequena, fiquei assustada porque estava faltando coisas básicas, tipo guidão simples. Então, eu fiz um estoque e foi isso que me salvou”.

Por conta desse planejamento, Talita conseguiu segurar os preços até o final do ano – outra reclamação de quem já era adepto das bicicletas ou aderiu recentemente. “Agora não tem como, tenho que repassar esse aumento. Não existe nada que não venha da China e a desvalorização da nossa moeda foi absurda. Eu tenho a (marca) Babilônia, que os quadros são feitos aqui, é uma produção artesanal, mas a tubulação vem da China e o preço aumentou em 115%”, conta.

Luciano Trevisol, 48, teve dificuldades para fazer a manutenção de sua bicicleta por conta do desabastecimento e do preço das peças. Trevisol é costureiro de uma marca que produz bolsas, alforges e mochilas para montanhismo e transporte de carga na bicicleta em Florianópolis (SC) e pedala desde os 10 anos.

A bicicleta é seu veículo de locomoção até para viagens. Entre maio e julho, a transmissão – sistema responsável por transformar a força das pernas do ciclista na rotação das rodas, composta de coroas, corrente, cassete, movimento central e pedivela – bateu 8.000 km e precisou ser trocada.

“Eu prefiro fazer a manutenção em lojas da região e não comprar em sites, como Mercado Livre. Mas durante a pandemia, tive que fazer isso porque os fornecedores locais não tinham nem coisas básicas como câmara de ar, K7, coroa. E as peças estavam em torno de R$ 50 a mais. Eu não consegui comprar um pedivela porque estava muito caro. Antes custava R$ 230, agora está chegando a R$ 400. Comprei só a coroa e foi mais de R$ 100”, conta Trevisol.

Apesar de todos os problemas e dificuldades, todos estão otimistas com o mercado de bicicletas neste ano. As fabricantes de bicicletas instaladas no Polo Industrial de Manaus deverão produzir 750 mil unidades este ano, de acordo com a Abraciclo. O volume deve ser 12,8% superior ao alcançado em 2020, que fechou com 665.186 unidades produzidas.

Gazola afirma que a expectativa do setor é de voltar a crescer depois de um ano de retração. “A sociedade brasileira está olhando mais para as bicicletas, retomaram o pedal em família, tiraram a bicicleta da garagem, compraram novas. 12% de aumento é nossa expectativa, mas vou ficar frustrado se for só isso, acredito que será mais”, afirma.

Apesar de acreditar que a pandemia é uma janela de oportunidades que o Brasil perder, Guth diz que não há espaço para retroceder no uso de bicicletas pelos brasileiros.

“Nós estamos otimistas com o mercado, acho que em 2021 vamos continuar com a demanda mais alta do que em pré-pandemia e a expectativa é que não haja mais desabastecimento. Há um crescimento no perfil de consumidor de média para alta renda que está buscando a bike como principal meio de transporte. Isso não deve mudar”.

Cyro Gazola afirma que a expectativa do setor é de voltar a crescer depois de um ano de retração. — Foto: Divulgação via BBC

Talita também acredita que esse crescimento da demanda é sólido. “Acho que meu mercado vai continuar estável, é só uma questão de planejamento. Minha expectativa, em particular, é boa mesmo dentro de um país em crise econômica e sanitária, com falta de perspectiva. É boa porque estou com saúde e não vou falir”.

Se depender da professora aposentada Vivian Leyser, 65, e de suas amigas, o mercado vai continuar, sim, aquecido. “Aqui em Florianópolis temos uma ciclovia fácil de acessar. No final de novembro, decidi voltar a ser ciclista. E, para minha satisfação, eu tenho amigas da minha idade que compraram também. Retomar o uso da bicicleta agora tem muito a ver com a sensação de que, para lazer, eu coloco máscara e uso ciclovia, então acho o nível de equilíbrio do risco e benefício é satisfatória”.

Com o aumento de ciclistas na rua, não basta apenas a normalização da produção, é preciso política pública para segurança dos usuários. A Aliança Bike criou um conjunto de 10 propostas para que abordam desde a ampliação da malha cicloviária nas cidades até a redução da carga tributária, passando pelo desenvolvimento do cicloturismo e a ampliação de direitos para quem optar pela bicicleta como meio de transporte.

“Enviamos para ministros, governadores, prefeitos, deputados. O pode público não olhou com atenção ainda a urgência que a mobilidade urbana precisa. Houve redução de frota de ônibus durante a pandemia, por exemplo, mas não houve aumento de ciclovias, nem que fossem temporárias durante esse período. O investimento em bicicleta é barato e de alto retorno social, qualquer economista diria que isso é um ótimo investimento”, afirma Guth, diretor da associação.

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Fonte: G1