‘Eu era péssimo em palavras cruzadas, mas criei inteligência artificial para fazer por mim’ | Tecnologia


Matt Ginsberg é bom em uma série de coisas — ele é um cientista de inteligência artificial, escritor, dramaturgo, mágico e piloto de avião acrobático. Mas não é muito bom em resolver palavras cruzadas, nem as que ele mesmo cria.

Apesar de escrevê-las para o jornal americano New York Times, ele conta que, quando elas são publicadas, muitas vezes não é capaz de acertá-las – ele se esquece das palavras e se considera um “péssimo solucionador de palavras cruzadas”.

Então, quando ele estava sentado no salão de um hotel, perdendo mais uma vez em uma competição de palavras cruzadas nos Estados Unidos, decidiu fazer algo a respeito.

“Eu estava com 700 pessoas que eram realmente boas em resolver palavras cruzadas e me incomodava ser tão terrível nisso. Decidi então escrever um programa de computador que daria o troco por mim“, diz ele à BBC.

E, finalmente, ele conseguiu. Após dez tentativas frustradas, Dr. Fill, como o programa é conhecido, acaba de ganhar sua primeira competição.

Ele ficou em primeiro lugar no American Crossword Puzzle Tournament, o principal torneio de palavras cruzadas dos Estados Unidos.

Dr. Fill foi treinado com uma massa de dados, incluindo um banco de dados gigante de pistas e respostas de palavras cruzadas retiradas da web.

Foi ensinado ainda a pesquisar com velocidade possíveis empregos de palavras em uma grade de palavras cruzadas. Era, admite Ginsberg, um sistema bastante “primitivo”.

Mas, neste ano, ele recebeu uma ajuda.

“Algumas semanas antes do evento, fui contatado por pessoas que trabalhavam em Berkeley que haviam construído um sistema de resposta de palavras cruzadas. Percebemos rapidamente que poderíamos combinar os dois.”

O professor Dan Klein, que lidera o Grupo de Processamento de Linguagem Natural na Universidade da Califórnia em Berkeley, explicou à BBC que estava procurando algo para unir a equipe durante o lockdown — e eles tiveram a ideia de criar um solucionador de palavras cruzadas.

Quando soube do Dr. Fill, pensou que os dois sistemas poderiam estabelecer uma boa parceria.

As palavras cruzadas podem enganar o mais inteligente dos humanos, mas como será que uma máquina se sairia? — Foto: GETTY IMAGES via BBC

“Nosso sistema apresentava uma compreensão mais ampla da linguagem, e o Dr. Fill era bom em como as respostas se combinam com outras pistas. São técnicas muito diferentes, mas que falam uma linguagem comum de probabilidades.”

Pode parecer estranho pedir para uma inteligência artificial resolver palavras cruzadas, mas na verdade elas representam um playground muito fértil para o chamado machine learning (aprendizagem automática de computadores).

Palavras cruzadas básicas que simplesmente exigem que alguém saiba a resposta são extremamente fáceis para uma inteligência artificial, que terá sido programada com grandes quantidades de informações de fontes disponíveis na web, como a Wikipedia.

As cripto cruzadas (que usam números correspondentes a letras, em vez de perguntas) também são muito fáceis para uma máquina, porque contêm regras muito definidas e dicas para coisas como anagramas.

Por outro lado, as palavras cruzadas no estilo americano exigem tanto conhecimento quanto um certo grau de pensamento lateral.

Uma pergunta que Klein está particularmente orgulhoso de Dr. Fill ter acertado foi: “O prato de massa no centro de um assassinato misterioso.”

A resposta era “penne envenenado”.

“Isso não pode ser encontrado na Wikipedia”, diz ele.

Ginsberg concorda que as palavras cruzadas no estilo americano podem ser “brutalmente difíceis” para os computadores decifrarem.

Dr. Fill cometeu apenas três erros em toda a competição, embora no final tenha vencido por uma pequena margem de diferença.

Alguns exemplos de palavras cruzadas que a inteligência artificial enfrentou na competição — Foto: YOUTUBE/MATT GINSBERG

Ginsberg não recebeu o prêmio em dinheiro de US$ 3 mil, algo que ele afirma ter sido combinado de antemão e ser “a decisão certa”.

Ele reconhece que é complicado para os organizadores de competições, se tanto humanos quanto máquinas participarem do torneio.

Felizmente, diz ele, a comunidade de palavras cruzadas é um “grupo maravilhoso”.

Embora os competidores possam fingir odiar a inteligência artificial adversária — vaiar Dr. Fill quando ele vai bem e vibrar quando ele vai mal —, no fundo ele acredita que os participantes estavam “realmente torcendo” por ele.

Ele não tem certeza disso, já que o evento deste ano foi virtual, o que significa que ele não pôde ver nenhum dos competidores.

Pelo mesmo motivo, no entanto, Dr. Fill foi capaz de se beneficiar de uma ajuda extra do computador, que normalmente não seria transportável.

A conquista ganhou elogios da DeepMind, empresa líder em pesquisas de inteligência artificial e que está acostumada a ganhar jogos — é famosa por ter derrotado o melhor jogador de Go do mundo em 2016.

“Parabéns a Ginsberg e à equipe de Berkeley. É uma conquista incrível e uma colaboração inspiradora, ver os principais pesquisadores de inteligência artificial combinando forças e ver poderosos blocos de construção de pesquisa e aprendizagem de inteligência artificial sendo empregados juntos”, declarou Michael Bowling, pesquisador sênior da DeepMind e professor de ciência da computação da Universidade de Alberta, no Canadá.

“Saber que há alguém melhor do que eu em palavras cruzadas não vai tirar meu prazer de tentar resolver uma delas às terças-feiras.”

Aprendendo de forma diferente

A evolução em direção ao que é conhecido como inteligência artificial de propósito geral, em que uma máquina pode completar uma série de tarefas em vez de apenas ser boa em uma coisa, está muito longe, mas bastante avanço já foi feito.

O processamento de linguagem natural, a especialidade do professor Klein, já alcançou feitos em cenários do mundo real tão diversos quanto tradução, reconhecimento de fala e possibilitando as conversas diárias que temos com assistentes de voz.

Mas, de acordo com Klein, estamos apenas começando a compreender como as máquinas aprendem.

“Nossa compreensão do que é fácil e do que é difícil para os computadores é mutável. As pessoas costumavam se surpreender com o fato de um computador poder competir no xadrez, mas agora achamos incrível que um ser humano possa competir contra uma máquina no xadrez.”

Segundo ele, a forma como um computador decide qual movimento fazer no jogo é uma combinação de “matemática, lógica e análise prospectiva”, que provavelmente não é exatamente a mesma maneira que um ser humano consideraria o mesmo movimento.

Ginsberg concorda que os humanos e as máquinas abordam os problemas sob diferentes perspectivas.

“Dr. Fill resolve esses quebra-cabeças de maneira muito diferente da nossa. Ele está fazendo uma pesquisa gigantesca de todas as respostas possíveis.”

Essa diversidade é, na opinião dele, um “bom prenúncio” para o futuro.

“Vamos resolver mais problemas com elas ao nosso lado do que somos capazes sozinhos. Vamos nos unir às máquinas para nosso benefício mútuo.”

Mas ele não tem planos de dominar o mundo, pelo menos por enquanto.

“Dr. Fill é apenas um programa de palavras cruzadas e estou satisfeito com isso.”



Fonte:G1