A angústia dos aposentados que temem não receber precatórios em 2022 por conta da PEC | Economia


Quando José Luís Guerretta viu, pela televisão, o ministro da Economia, Paulo Guedes, chamar os pagamentos de precatórios do governo federal para 2022 de “meteoros”, começou a rever os planos da família para o ano que vem.

Era final de julho e, exatamente um mês antes, ele havia recebido a decisão favorável de um processo judicial que se arrastava desde 1989 – que exigia que a União lhe pagasse cerca de R$ 220 mil dentro do próximo orçamento.

Então, em agosto, enquanto a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 23/2021 – chamada de PEC dos Precatórios – chegava à Câmara, e o mesmo Guedes dizia que “Brasília iria parar” se o projeto não fosse aprovado, Guerretta já estava pouco esperançoso em receber o dinheiro.

Agora, na iminência de a emenda passar pelo crivo do Senado (já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Casa) e cortar metade dos precatórios das despesas federais de 2022, ele apenas sustenta aquele pessimismo inicial. “Provavelmente vou tomar um calote”, lamenta.

CCJ do Senado aprova parecer sobre a PEC dos precatórios — Foto: Jornal Nacional/ Reprodução

A expectativa era do mesmo tamanho, porém. Em julho de 1991, três anos depois de sua aposentadoria como metalúrgico da extinta Autolatina, conglomerado automobilístico da Ford e da Volkswagen, a lei que recalculou a previdência brasileira com base nas exigências da nova Constituição confirmou que ele deveria receber o valor de teto da aposentadoria à época, de cerca de seis salários mínimos.

Era uma conquista tardia, já que Guerretta havia deixado a empresa em fevereiro de 1989 com uma carta nas mãos que reconhecia esse direito. Neste interim, chamado entre especialistas previdenciários de “buraco negro”, ele ficou recebendo bem menos do que isso: quase dois salários mínimos.

No entanto, o então recém-fundado Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) não fez a regra valer, e Guerretta precisou esperar pouco mais de 25 anos, até meados de 2016 para, enfim, ver o órgão admitir o equívoco e passar a lhe pagar o valor correto.

“No começo, foi como se eu não tivesse me aposentado. Fiquei endividado e precisei voltar a trabalhar como ferramenteiro em uma oficina mecânica perto de casa para complementar a renda”, conta ele. “Tudo isso com três filhos para alimentar. Foi um tempo de necessidade.”

Em junho deste ano, a Justiça lhe deu causa ganha no processo em que ele pedia à União a correção dessas duas décadas e meia em que sua aposentadoria foi menor do que deveria ser. Pelo trânsito em julgado, não havia mais como a União recorrer e, seguindo o trâmite legal, o pagamento de Guerretta entrou no total de precatórios (que são são dívidas da União sobre as quais não há possibilidade de recurso judicial) do ano que vem.

Esse montante previsto a ser pago em precatórios em 2022, que, enquanto a PEC não é aprovada, soma R$ 89,1 bilhões entre dívidas com beneficiários do INSS, Estados e municípios.

Até ouvir o ministro chamar seu dinheiro de “meteoro”, Guerretta planejava dividir a quantia a ser recebida entre os três filhos. “Depois da pandemia, seria uma boa ajuda para eles”.

Para Eli Hernandes, de 75 anos, no entanto, receber o que falta do seu precatório até o ano que vem é uma questão de urgência. Aposentado desde 1996, o INSS também lhe pagou um valor abaixo do cálculo correto por duas décadas: ao invés do teto, ele passou esse período tendo, com correções anuais, uma aposentadoria de cerca de quatro salários mínimos.

Em meio à longa batalha judicial, descobriu um câncer na próstata que dura até hoje. Há cinco anos, já durante o tratamento de radioterapia, quase 60% do montante atrasado foi liquidado (cerca de R$ 340 mil).

“Foi um alívio depois de anos arcando com os custos médicos e com uma renda menor”, revela. Agora, enquanto a doença avança, ele anseia pelo restante dos recursos para seguir pagando pelos remédios mais caros, pelos exames e o pelo próprio convênio de saúde. “É o momento em que estou mais precisando do dinheiro”.

Um terço de pagamentos dos precatórios estão previstos para beneficiários do INSS — Foto: Divulgação via BBC

Aposentados e pensionistas

Um levantamento do Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos (Sindnapi) com base nos dados públicos de tribunais federais e obtido pela BBC News Brasil mostra que um terço (34%) dos precatórios de 2022 é de natureza “alimentar”, ou seja, são dívidas de aposentadorias, pensões, indenizações e salários atrasados históricos do INSS, como os de Eli e José Luís.

Como eles, são aproximadamente 200 mil pessoas na mesma situação e que somam, reunidas, cerca de R$ 31 bilhões da composição dos precatórios do próximo ano. Se a PEC for aprovada no Senado, porém, o montante disponível para pagá-los cairá dos R$ 89,1 bilhões para apenas R$ 43,7 bilhões, de acordo com cálculo da Instituição Fiscal Independente (Ifi).

Como a outra parte dessas despesas judiciais é de ações já julgadas por erros nos repasses do antigo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), cujos beneficiários são, principalmente, os Estados do Ceará, Pernambuco e Bahia, a União terá invariavelmente que decidir se saldará todas as suas dívidas previdenciárias (os R$ 31 bi) ou se vai arcar com as contas que possui em aberto com os governos estaduais (que somam R$ 15,5 bi).

No texto votado na Câmara no início de novembro, abriu-se a possibilidade de apenas 40% dos valores do Fundef serem pagos em 2022, em uma negociação que, por outro lado, permitiu que a proposta fosse aprovada pelos deputados. Não à toa, o presidente da Câmara, Arthur Lira, se encontrou com os governadores nordestinos naquela semana e prometeu que as dívidas com eles seriam priorizadas. Só a Bahia, por exemplo, tem R$ 8,8 bilhões pendurados nesses processos.

“A conta foi invertida: o governo estipulou primeiro quanto quer ter em mãos e, a partir desse montante, definiu o quanto está disposto a pagar dos precatórios”, analisa a advogada Tônia Galetti, que dirige o Sindnapi.

Um dos artigos da PEC delimita que os pagamentos do ano que vem darão prioridade para pessoas com mais de 60 anos ou com doenças graves – como é o caso de Eli, por exemplo. Outra parte do texto, porém, restringe os credores pelos valores que eles têm a receber e, assim, sugere que o projeto pode colocar na frente quem tem processos mais baixos na fila – as chamadas Requisições de Pequeno Valor (RPVs), abaixo de 60 salários mínimos (R$ 66 mil).

Assim, quem conviveu por muito tempo com equívocos do INSS no cálculo dos benefícios pode ficar de fora. “Não há clareza sobre a ordem de prioridades. O projeto diz que todos os precatórios alimentares terão que ser pagos, por exemplo. Mas, se for assim, a conta não fechará. É tudo muito incerto”, continua Galetti.

Além dos beneficiários do INSS e das dívidas do Fundef, o Executivo federal deve ainda R$ 16,6 bilhões por decisões já julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, cujos credores são, majoritariamente, Estados, municípios e servidores públicos. Se eles receberem os recursos integralmente, sobrarão apenas R$ 11 bilhões para liquidar todos os precatórios alimentares. “É a institucionalização do calote”, opina Tônia Galetti.

Se aprovada, a PEC liberará, no total, R$ 93 bilhões para o governo investir no Auxílio Brasil — Foto: GETTY IMAGES via BBC

O advogado previdenciário Carlos Alberto Goes acredita que a solução do governo será adiar boa parte dos precatórios alimentares para os anos seguintes, aumentando ainda mais essa espera.

“Do jeito que a PEC está sendo feita, não dá para saber as preferências. Parece que estão colocando tudo em um balaio só”, afirma, lembrando de um cliente do seu escritório que escancara essa ansiedade. “Ele tem cerca de R$ 240 mil para receber do INSS, mas já teve um derrame, é cadeirante por causa disso, e acabou de descobrir um câncer. Precisa muito do dinheiro e me liga chorando”, conta.

“É tanta incerteza que um caso como esse pode parar no final da fila”, completa Góes.

É a mesma preocupação de Jacomo Cicoti, de 73 anos. Aposentado da General Motors (GM) desde 1995, ele jamais recebeu o teto salarial ao qual tinha direito desde que saiu da empresa. No caso dele, houve ainda um erro de correção do INSS sobre a inflação acumulada, de 22,4% naquele ano, que ele também nunca viu ser resolvido. “Eu estou perdendo dinheiro desde aquela época. Por muito tempo, minha solução foi fazer bicos”, conta ele.

No começo deste ano, enfim, a Justiça decidiu que ele deveria receber todos os atrasados de uma única vez – e o pagamento ficou para o ano que vem. A PEC, no entanto, pode fazê-lo receber só em 2023. “Eu nem estou vendo as notícias para não me desesperar”, relata.

**Enquanto a PEC não é aprovada, as expectativas ficam em torno das declarações das autoridades. Arthur Lira, por exemplo, tem dito nas últimas semanas que todos os precatórios serão zerados em 2022. Guedes, por sua vez, tenta apenas tirar o peso da palavra “calote”, admitindo os adiamentos.

O presidente Jair Bolsonaro, enquanto isso, disse há alguns dias que os processos são uma “indústria”.

Para Goes, “esse projeto (da PEC) é como se alguém roubasse seu relógio e depois quisesse vendê-lo para você. Ele favorece novamente o INSS, não o aposentado”, opina.

Para Tônia Galetti, o projeto gera ainda mais incertezas. “A gente se pergunta sobre 2023. O governo vai pagar ou vai querer dividir tudo novamente? Além disso, o mercado começa a temer que calotes como esse se tornem uma política de Estado”.

**Se aprovada, a PEC liberará, no total, R$ 93 bilhões para o governo investir no Auxílio Brasil, programa social que substituiu o Bolsa Família. O montante virá do adiamento dos precatórios e de uma mudança técnica no cálculo da inflação que delimita o teto de gastos.

Segundo a Ifi, essa manobra vai garantir mais R$ 47,6 bi aos cofres do Executivo. Com isso, 17 milhões de famílias beneficiárias do programa passarão a receber R$ 400 por mês até o fim de 2022. “É uma medida muito negativa para a responsabilidade fiscal e para o equilíbrio das contas públicas. Os efeitos já aparecem nos juros e no custo médio da dívida”, observa Felipe Salto, diretor-executivo da instituição.

Em meio à indefinição, José Luis Guerretta já sabe que não poderá deixar de trabalhar no ano que vem, como planejava. Desde meados dos anos 1990, muito por causa da sua briga na Justiça, ele se tornou advogado. “Eles deveriam tirar dos Estados, não da gente que está aposentado”, opina. E, enquanto Hernandes, por sua vez, se equilibra entre o desespero e o ceticismo, Carlos Alberto Goes luta para liberar o dinheiro do seu cliente antes do pior. “Se ele morrer antes, eu vou entrar em depressão”.



Fonte: G1