Búzios: um paraíso ameaçado

Texto originalmente publicado no jornal O Globo

Quem acha que vai descansar em Búzios, com ceia e distribuição de ovos de Páscoa para as crianças na Semana Santa, deve tentar mudar de destino. Pior se for em Geribá. O canto direito da praia, que costuma ser um paraíso de mar transparente junto às pedras, está ocupado por um imenso palco. Abrigará o “Búzios Sunset 2019” (em inglês, fica mais chique). Os shows de Jota Quest, Toni Garrido e Blitz, quinta, sexta e sábado, três dias seguidos, são promessa de um agito incalculável para milhares de pessoas. Na areia. Um “presente” da prefeitura, que contratou as bandas. Moradores estão fugindo de suas casas de Geribá no feriadão para não sofrer com a invasão e o barulho. E não se aborrecerem. O palco foi montado entre o mar, o morro, a vegetação nativa e condomínios de casas.

A história preocupa quem escolheu Búzios, pela beleza do mar, diversidade de praias e tranquilidade, para morar ou ter casa de fim de semana. A Lei do Plano Diretor, de 2004, elaborada com cuidado e com a participação de entidades civis e da população, definia Búzios como “cidade referência na Preservação do Meio Ambiente”. Um dos vários objetivos era proteger Búzios do turismo predatório ou do mau uso das praias, como por exemplo um uso comercial. A lei proibia shows, espetáculos e eventos privados na orla e tinha total apoio das entidades civis. Permitia eventos sem fins lucrativos, ou religiosos, organizados pelo Poder Público, sem propaganda de empresas privadas. Um decreto do prefeito André Granado, neste mês de fevereiro de 2019, mudou as regras. Com apoio da Câmara Municipal, ele retirou da lei anterior a cláusula que proibia propaganda de empresas privadas. Assim, com patrocínio e propaganda de empresas, shows de música poderão ser realizados nas areias de Búzios – e a população e as entidades civis estarão de mãos atadas. Cuidem-se. Ou protestem.

Os shows do Jota Quest, Toni Garrido e Blitz estavam programados para o último Carnaval em Geribá, com patrocínio da OI, mas a prefeitura não tinha cumprido alguns requisitos de segurança. Agora, com os requisitos cumpridos, a Semana Santa terá um som ensurdecedor no canto mais tranquilo da praia – segundo a prefeitura, bancados 100% por verba pública desta vez. O grupo Jota Quest foi contratado por R$ 145 mil para se apresentar na quinta-feira. Toni Garrido, por R$ 57 mil, na sexta. E a Banda Blitz, por R$ 60 mil, no sábado. Não consigo ver a ligação entre o som dessas bandas e “as Festividades da Semana Santa” – embora a prefeitura enxergue que tem tudo a ver. Carnaval tudo bem. Mas Páscoa? Mesmo moradores não religiosos estão reclamando. Quem vai para Búzios no Carnaval quer som e há quem busque até privação dos sentidos. É outro o turista da Semana Santa.

Muitas vozes influentes se insurgiram, em vão. Falei com o presidente da Associação de Hotéis, Hector Sirera, que vive em Búzios desde 1986, também ligado ao conselho de meio ambiente local. “Sou sensível à preservação ambiental de Búzios, até por motivos empresariais. Ouvi de associados que precisamos de eventos. Que cidades turísticas precisam de eventos. Ok. Mas a praia, a meu ver, é para desfrutar, nadar, nem gastronomia deveria haver nas areias, com cozinhas não fiscalizadas. Não sou contra rock, pop ou qualquer gênero. Mas na areia da praia? E em Geribá, causando transtorno a tantos moradores? Há praias mais desertas, como Tucuns. Sou contra show em qualquer praia, também por motivo de segurança. Como prever quantos policiais e viaturas são necessários? Virão quantas pessoas? Oito mil, 10 mil? Em show privado, tem como avaliar o risco. Não sei qual é o parâmetro de segurança para espetáculos assim. Para a hotelaria, esses eventos são uma enganação. A maioria nem fica em hotéis. E por que em feriadão, quando a cidade já fica cheia? Infelizmente, criou-se uma cultura em Búzios de que a cidade precisa ser barulhenta para sobreviver. Não é verdade”.

Conversei também com Mônica Casarin, moradora de Búzios há 20 anos, e escandalizada com a atual gestão municipal. “Lamentável. Búzios não é uma cidade que tenha estrutura nem gabarito para esse tipo de show. É pequena. Não se faz estudo de capacidade de carga. Ruas pequenas, sem estacionamento. No réveillon, recebe 100 mil turistas. Contando o verão, pode calcular aí uns 200 mil. Numa cidade de 35 mil habitantes! Não tem segurança suficiente em tempos normais, mesmo sem evento, imagina com um show. Transparência nao existe. A gente convidou o prefeito para falar com o conselho do meio ambiente. Ele manda o chefe de gabinete. O prefeito não ouve ninguém. Não aparece para conversar e ouvir quem se preocupa com o presente e o futuro de Búzios. Meu marido é belga. A gente escolheu Búzios, numa época em que a cidade convivia com um turismo de qualidade e não quantidade. Em 2003 ou 2004, houve um show na praia em que as pessoas pisotearam a vegetação nativa de restinga, subiram nos parapeitos das casas, invadiram os jardins. O caos. A lei que tínhamos evitava a chance para esse nível de tumulto. A prefeitura não consulta ninguém, só anuncia o show nas redes sociais. Eles têm dinheiro para contratar bandas mas não para botar ar condicionado nas escolas municipais”.

O que corre na boca dos moradores é que a prefeitura está fazendo de Búzios um “negócio” com várias empresas, como a OI, que estaria entrando no município com fibra ótica e internet. Falei com Lorram da Silveira, o chefe de gabinete do prefeito. Ele se disse “surpreso” com as críticas, falou que a repercussão do anúncio dos shows tem sido “muito positiva” e negou que, agora na Semana Santa, haja patrocínio da OI ou de outras empresas. “Até buscamos, mas não conseguimos, só havia no Carnaval”. Garantiu que haverá proteção ao patrimônio, à vegetação, e que os shows vão durar das 18hs às 21hs, “para que as pessoas possam descansar tranquilamente”. Argumentei que a algazarra na praia não vai durar só três horas. Lorram disse que as pessoas serão dispersadas pelos policiais, que estarão ali “das 16hs ao término”. A segurança contará com 30 guardas municipais, a pé e em quadriciclos, duas viaturas “ordenando o acesso e aumentando a sensação de segurança”; 10 guarda-vidas “para orientar e agir no salvamento”, se preciso for; 16 PMs, quatro agentes da Defesa Civil, 20 apoios da Postura Municipal. Lorram prometeu grades para proteger a vegetação, instalação de banheiros, proibição de ambulantes vendendo álcool a menores, e “logística de trânsito”.

Moradores e veranistas com casas atrás e ao lado do palco, ou nas ruas internas e próximas ao “Búzios Sunset 2019” evitarão estar lá. É muito difícil saber qual é o público estimado para esse tipo de show. A prefeitura também não soube me dizer. O chefe de gabinete do prefeito disse que os shows são “diferenciados” e que será “um público seleto”. “Graças a Deus, conseguimos disponibilidade das bandas para quinta, sexta e sábado. Sobre as críticas, sempre que realizamos coisas que fogem aos paradigmas da cidade, isso causa um desconforto natural”. Geribá, segundo Lorram, “é perfeita para esse tipo de show por causa da faixa de areia”. Há controvérsias, como diria meu amigo Ancelmo Gois.

Uma Semana Santa “diferenciada”, sem dúvida, para quem deseja se divertir em paz e em família”.

RUTH DE AQUINO: nasceu no Rio. Jornalista desde 1974. Mestrado em Londres sobre Ética na imprensa. Foi repórter, editora, diretora de redação, correspondente em Londres e Paris, colunista. Sua especialidade é o ser humano e suas contradições.

Fonte: Texto Publicado Originalmente no Jornal O Globo em 17/04/2019, às 10:54