O que tem em comum o debate do “foro privilegiado” de Flávio Bolsonaro e Marquinho Mendes?

Decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concedeu Habeas Corpus ao senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), fixando a segunda instância como foro competente no “caso Queiroz”, ao fundamento de que na época dos fatos ele exercia o cargo de deputado estadual. Com a decisão, as investigações saem da 27ª Vara Criminal do TJ carioca e passam para Órgão Especial do tribunal. Importante destacar, porém, que essa decisão está na contramão de tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal.

Isso porque no julgamento da Ação Penal (AP) 937, em 3 de maio de 2018, em que o réu era o então deputado federal Marquinho Mendes (de Cabo Frio) seguindo o voto do relator Roberto Barroso, houve substancial alteração do entendimento em relação ao alcance do foro privilegiado, atrelado aos casos envolvendo deputados federais e senadores, posteriormente estendido para ministros de Estado e governadores.

Com tal decisão da Corte Suprema, o foro por prerrogativa de função somente será aplicado aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. Isso alterou radicalmente o entendimento anterior, que estabelecia que uma vez empossado, o ocupante do cargo adquiria a prerrogativa de foro inclusive para os crimes praticados antes da posse.

BARROSO À ÉPOCA CLASSIFICOU O CASO DE “ELEVADOR PROCESSUAL”

O caso fático da AP nº 937 envolvia a situação do ex-prefeito de Cabo Frio que, concorrendo nas eleições para a Prefeitura em 2008, foi acusado de captação ilícita de sufrágio. Como foi eleito prefeito, o réu teve sua denúncia recebida pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro – TRE-RJ em 2013. Com o fim de seu mandato, o caso foi enviado para a primeira instância em 2014, ali tendo permanecido enquanto o réu esteve sem mandato. Em 2015, no entanto, Marquinho Mendes (que figurava como suplente) assumiu como deputado federal, e os autos foram remetidos ao STF.

Ocorre que, em 2016, o réu novamente se afastou do mandato (diante do retorno do titular), tendo ficado nessa situação sem foro por alguns meses até reassumir outra vez como suplente e, pouco depois, ser efetivado no mandato, em virtude da perda do cargo pelo eleito. Como se não bastassem todas as intercorrências já citadas, Marquinho Mendes ainda veio a ser eleito prefeito de Cabo Frio mais uma vez, assumindo em 2017. O caso, nas palavras do min. Luís Roberto Barroso, “revela a disfuncionalidade prática do regime de foro”.

Entender bem a circunstância fática da AP nº 937 é importante, pois permite a clareza necessária para separar os diferentes tipos de situação que podem surgir. De um lado, está o caso daqueles cujas sucessivas mudanças de cargos resultaram no “sobe e desce de autos”, em atenção às regras de foro do mandato atual, inclusive, entremeando períodos em que não se ocupou qualquer mandato, com remessa dos autos à primeira instância. Trata-se, claramente, do que o min. Marco Aurélio denominou “elevador processual”, problema que se quis combater com a restrição do foro promovida no julgamento da AP nº 937.

NO ENTENDIMENTO DO STF “MUDANÇA DE FORO” NÃO TEM VALIDADE NESSES CASOS

Outra considerável alteração, estabelecida na decisão do STF, está relacionada ao estágio em que se encontra a ação penal. Com a decisão, após a audiência de instrução e julgamento, mesmo que o parlamentar deixe a função, permanecerá a competência da Corte Suprema. O mesmo ocorrerá caso o parlamentar federal diplomado, que estava sendo julgado em primeira instância e o processo já se encontrava na fase de alegações finais, permanecerá na vara de origem. Com isso limita o “efeito gangorra”, o sobe e desce do processo. Dessa forma, encerrada a instrução processual haverá a perpetuação da jurisdição.

No caso de Flávio Bolsonaro, a defesa sustentou que o foro competente seria o órgão especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, uma vez que era deputado estadual na época dos fatos. Cumpre destacar, em sentido oposto ao alegado pelos advogados do senador Bolsonaro, que sequer há ação penal proposta pelo Ministério Público, estando ainda na fase investigatória de suposta prática de “rachadinha”, o que, por si só, nos termos do posicionamento exarado pelo STF na AP nº 937, afasta o foro especial na espécie.

IMBRÓGLIO JUDICIAL CAUSADO ESTÁ LONGE DE TER UMA SOLUÇÃO

Essa questão está longe de ser resolvida, uma vez que o Ministério Público do Rio de Janeiro deverá manejar reclamação constitucional ao STF, diante da evidente afronta à decisão proferida na supramencionada ação penal, a qual estabeleceu, com repercussão geral, as balizas para a fixação do foro por prerrogativa de função, não observado pelos desembargadores Mônica Toledo e Paulo Rangel, que divergiram do voto da relatora desembargadora Suimei Cavalieri, que denegava a ordem e mantinha a tramitação em primeira instância.

A divergência levantada pela desembargadora Monica Toledo é, no mínimo, estranha, ao fazer construção hermenêutica surreal, criando a figura do “foro por arrastamento de função”, na medida em que reconheceu o foro especial para Flávio Bolsonaro sob o fundamento de que não ocorreu interrupção da condição de parlamentar, haja vista que permaneceu como deputado estadual até 31 de dezembro de 2018 e assumiu como senador em 1º de janeiro de 2019.

O equívoco da eminente desembargadora é gritante, uma vez que houve, com a assunção de novo mandato para um cargo político em esfera diversa, um hiato funcional concreto, mesmo que aparentemente imperceptível. Não se pode olvidar que a partir da diplomação os efeitos legais no novel posto são assumidos, tais como o previsto no artigo 53, §3º, da Constituição que estabelece: “Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação”.

Dessa forma, não há dúvida que são abissalmente diversas as funções de deputado estadual de um ente da federação e de senador da República. Portanto, não há que se falar em prorrogação da condição de parlamentar ou não interrupção da condição de parlamentar, para a fixação do foro especial no caso de Flávio Bolsonaro. A decisão da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça fluminense está em evidente dissonância do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal e deve ser revista, para que não haja a perpetuação dessa usurpação de competência na espécie.

Como consequência imediata da equivocada decisão da 3ª Câmara Criminal foi a extensão dos efeitos para todos os investigados no inquérito. Todavia, o órgão fracionário da corte fluminense manteve, por ora, todas as medidas cautelares deferidas pelo juízo de primeira instância, como as interceptações telefônicas, busca e apreensões, quebras de sigilos e a decretação de prisões preventivas, o que mantém custodiado provisoriamente Fabrício Queiroz e foragida sua esposa, deixando eventual análise de nulidade das medidas para o Órgão Especial da corte, composta por 25 desembargadores.

Questões devem ser feitas: mantida a decisão que deslocou a competência para o órgão especial, como ficam os atos decisórios praticados pelo juízo incompetente? Por afronta à garantia do juiz natural serão anuladas as eventuais provas obtidas com as cautelares deferidas pelo dr. Itabaina? Essa garantia deve ser respeitada na fase investigatória ou bastaria ao futuro relator ratificar todos os atos anteriores? Perguntas que o tempo se encarregará de responder.

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Fonte: Portal Jota / Portal Conjur
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