Empresas podem obrigar seus funcionários a se vacinarem contra a Covid-19?

Uma empresa pode condicionar o retorno dos funcionários ao trabalho à aplicação de uma vacina contra a Covid-19? O tema começou a ser debatido com o início do processo de imunização em alguns países e após o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmar a possibilidade de uma política de vacinação obrigatória à população.

O Supremo entendeu constitucional que a União, os estados e os municípios imponham medidas restritivas para incentivar que as pessoas tomem a vacina que estiver disponibilizada. A forma como isso reflete nas relações trabalhistas começou a ser debatido entre empresários, advogados, promotores e juízes do trabalho.

De acordo com especialistas consultados a discussão gira em torno de dois pontos principais: seria possível ao empregador exigir a vacinação? E em caso positivo, seria legítima a demissão com justa causa do trabalhador que se recusar a tomar a vacina?

Debates reservados

Nos Estados Unidos a discussão já acontece, em contexto semelhante ao brasileiro. Diante da resistência de parte da população às medidas de segurança contra o avanço da pandemia, inspirados pelo presidente Donald Trump, empregadores já refletem sobre o tema.

Por aqui, durante o julgamento do STF no último dia 17 de dezembro, ministros do Supremo suscitavam, em reservado, dúvidas sobre essa possibilidade. Em meio aos debates no plenário, os ministros já refletiam sobre o tema. “Faz sentido [as empresas poderem exigir a vacinação]”, disse um ministro.

Outro integrante do Supremo concordou que, se as empresas passarem a exigir a vacinação, isso poderia contribuir para aumentar a imunização da população quando houver vacina disponível.

A juíza Noemia Porto, da 10ª Região, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), pondera que a solução não é simples. “A resposta não comporta uma opinião definitiva. Embora, inicialmente, pudesse ser visto como direito da empresa, é necessário considerar a liberdade individual.”

Para ela, a recusa do empregado em se vacinar é legítima, ainda que criticável, em razão da crise sanitária. Mas não seria indisciplina do empregado a gerar uma justa causa. “Demitir sem justa causa seria a saída, se a empresa quiser romper o contrato”, conclui.

O advogado trabalhista Gustavo Ramos, do escritório Mauro Menezes Advogados, ressalta que o Supremo deixou claro que a compulsoriedade não pode ser traduzida como vacinação forçada das pessoas. O que o Estado pode fazer é impor ônus ou sanções a quem se recusar a ser vacinado, como restrições de direitos, restrição de circulação e acesso a eventos e a escolas públicas ou mesmo deixar de conceder benefícios.

“Visando a cumprir sua obrigação constitucional de proteção à saúde dos trabalhadores que lhes prestam serviço, inclusive aqueles esporádicos ou terceirizados, compreende-se como razoável e juridicamente defensável eventual pedido do empregador para que seus empregados se vacinem. Esse é um dos elementos que facilitaria garantir a higidez e a segurança do ambiente laboral, mas não é o único, como sabemos”, avalia Ramos.

Justa causa

No entendimento do juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT10) e professor Ricardo Lourenço Filho, o empregador é responsável pela salubridade do ambiente de trabalho, mas não pode adotar condutas arbitrárias. Ao mesmo tempo, tem o dever de orientar e instruir, respeitando a liberdade de consciência do empregado.

“Se a empresa estiver em um sistema telepresencial, em um primeiro momento me pareceria estar dentro do poder diretivo condicionar o retorno presencial à vacina, mantendo em regime de teletrabalho os demais [funcionários]. Mas o elemento de informação é importante: o empregador tem um papel de orientação e informação aos empregados. Essa tem que ser a primeira conduta”, explica.

Lourenço não vê, portanto, espaço para que uma empresa demita um funcionário que opte por não se vacinar. “A liberdade individual confere um direito a não se vacinar, e o exercício dessa liberdade não pode ser fator de perda de outro direito, como o emprego”.

Da mesma forma defende o advogado Gustavo Ramos. “O empregador não pode transferir a responsabilidade de eventual contaminação de outros trabalhadores no ambiente laboral para um trabalhador que não esteja vacinado. As fontes de contaminação são inúmeras, até mesmo por intermédio de clientes ou por objetos contaminados”, afirma.

A dispensa por justa causa, então, seria abusiva, por ser a pena máxima no âmbito das relações de trabalho: “equivaleria a se admitir que um país pudesse banir o cidadão que se recuse a ser vacinado”, diz Ramos. Além disso, para o advogado, seria indispensável que, para uma medida deste nível, houvesse previsão legal, o que não existe até agora.

Lorena Porto, professora do IDP e procuradora do Trabalho, ressalta que há uma série de normas no ordenamento jurídico brasileiro que obriga o empregador a garantir a segurança física e psíquica do trabalhador. Mais do que isso, ele responde objetivamente se não o fizer. São regras trazidas pela Constituição Federal, normas regulamentadoras do antigo Ministério do Trabalhado e tratados internacionais, como a Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata das questões de saúde no ambiente de trabalho.

A professora cita o caso dos profissionais de saúde, que exercem uma atividade entendida como de risco. “Para o empregador cumprir todas essas exigências, ele teve de adotar uma série de medidas, como a implementação de equipamentos de proteção individual, os EPIs, o trabalho remoto, notadamente os de grupo de risco. Para os que estão trabalhando presencialmente, medidas sanitárias de controle interno. Neste contexto, para evitar o contágio de um trabalhador e a contaminação dos demais, se inseriria a vacina e podem ser estabelecidas restrições dos direitos”, analisa.

Na visão dela, como o empregador tem a necessidade de assegurar o ambiente de trabalho saudável e já é obrigado a exigir exames médicos, admissionais periódicos e demissionais, a vacina entraria na mesma lógica. Não seria, então, abuso de poder empregatício a exigência de vacina para o retorno ao trabalho. No caso de recusa, no entanto, o empregador não poderia demitir com justa causa, já que esta exige uma série de requisitos definidos por lei para caracterizá-la.

Sócio do Bichara Advogados, Jorge Gonzaga Matsumoto entende de outro modo. “A empresa pode exigir a vacinação e demitir por justa causa, com certeza. Isto porque ela tem responsabilidade direta pela saúde dos empregados ao seu redor. É uma responsabilidade constitucional de zelar pela saúde, o que traz o direito de exigir que o trabalhador tome todas as medidas cabíveis”.

Não há, para ele, opção por parte do empregador, pelo que define o artigo 7° da Constituição. “Se uma empresa não fizer isso, pode sofrer questionamentos pelo Ministério Público do Trabalho por omissão e negligência”, diz. Assim, a demissão se daria por justa causa, por indisciplina e negligência.

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