Superesportivos: como tecnologia de segurança protege motoristas mesmo em acidentes gravíssimos




Reportagem explica se é possível um carro mais barato alcançar níveis altos de proteção e quais avanços tecnológicos tornam veículos modernos cada vez mais confiáveis. Porsche amarela envolvida em briga de trânsito na Avenida Interlagos na madrugada desta segunda-feira (29)
Reprodução/TV Globo
Em questão de semanas, três acidentes com morte tiveram um elo em comum: motoristas de carros de luxo aceleram demais, causam graves acidentes com morte de terceiros e saem do episódio com poucos arranhões.
O primeiro deles foi Fernando Sastre Filho, motorista de um Porsche 911 Carrera que bateu a mais de 100 km/h na traseira de um Renault Sandero e matou o condutor Ornaldo da Silva Viana, um motorista de aplicativo de 52 anos.
Já preso, Sastre Filho disse à Justiça de São Paulo que fraturou duas costelas e três ossos da face. No dia do acidente, porém, sua mãe o removeu do local do acidente, alegando a necessidade de atendimento médico. O passageiro, Marcus Vinicius Machado Rocha, ficou 10 dias internado, passou por cirurgias, mas hoje está bem.
Vídeo mostra momento da batida de Porsche em carro de motorista de aplicativo
Apenas 120 dias depois, Igor Ferreira Sauceda, proprietário de Porsche 718 Cayman GTS atropelou e matou o motociclista Pedro Kaique Ventura Figueiredo por ter quebrado o retrovisor do carro de luxo, batendo em seguida contra um poste.
Em vídeos gravados por testemunhas, Sauceda é visto saindo ileso da cabine do veículo e checando os danos da batida. Ele foi preso em flagrante. A namorada dele, que estava no banco do passageiro, sofreu ferimentos leves e foi levada a um pronto-socorro.
Pedro Kaique, de 21 anos, foi socorrido, mas não resistiu aos ferimentos e morreu no hospital.
Fantástico ouve testemunha que viu Porsche perseguir motociclista em São Paulo
Para o terceiro caso, bastaram três dias: um Porsche Boxter atropelou e matou o motociclista Adilson de Lima, um lavrador de 47 anos, em Teresópolis, região Serrana do Rio de Janeiro. O dono do veículo é o influenciador digital Renan Rocha da Silva.
Outro homem se apresentou na delegacia como o condutor do veículo, mas Renan é investigado como suspeito de ser o motorista e é considerado foragido pelas autoridades.
O influenciador já tinha um mandado de prisão em aberto por crimes relacionados ao trânsito, como dirigir sem habilitação.
Polícia procura influenciador dono de carro de luxo que atropelou e matou motociclista, em Teresópolis
A Porsche chegou a publicar uma nota em que diz que a empresa investe “extensivamente em programas de treinamento de condução como forma de ampliar a segurança no uso dos automóveis” e tem um amplo portfólio de oportunidades para utilização dos veículos em ambientes seguros e controlados.
Em outras palavras, a empresa faz questão de promover situações seguras para que seus clientes não precisem infringir as leis de trânsito para conduzir um esportivo. Mas a imprudência dos motoristas nos três episódios ofusca outra questão fundamental: a tecnologia de ponta que os fizeram sobreviver.
Mesmo depois de batidas fortes, a cabine dos Porsche ficou tão preservada quanto foi possível. Isso porque a Porsche e as demais montadoras de ponta têm aproveitado as tecnologias desenvolvidas para veículos de competição em seus modelos de rua.
São tecnologias de segurança ativa e passiva que chegam a ser similares ou até superiores aos carros de corrida, que não têm airbags, por exemplo. Mas o princípio que une tanto os veículos de competição quanto os esportivos de rua é o mesmo: a resistência da cabine.
Batida de Scott Dixon durante as 500 milhas de Indianápolis em 2017: piloto sai do carro sem ferimentos graves
Imagem: NTT IndyCar Series
Um exemplo bem ilustrativo foi o acidente com o piloto neozelandês Scott Dixon na prova das 500 milhas de Indianápolis, em 2017. A colisão em alta velocidade fez o veículo levantar voo e capotar várias vezes, mas o piloto não sofreu ferimentos e saiu andando.
O que faz com que alguns carros sejam extremamente seguros enquanto outros não alcançam os mesmos níveis de proteção? O preço mais alto determina quem sobrevive ou não em uma batida?
Nesta reportagem, o g1 demonstra o que diferencia um veículo de outro, se é possível um carro mais barato alcançar níveis altos de proteção e quais avanços tecnológicos tornam veículos modernos cada vez mais seguros.
A traseira do Renault Sandero branco ficou destruída após ser atingida pelo Porsche 911 azul
Rômulo D’Ávila/TV Globo
Segurança do esporte para a rua
É na cabine que a revolução da segurança veicular da indústria automotiva trouxe os resultados mais expressivos ao longo dos anos. Conservar o habitáculo se tornou a principal obsessão da indústria automotiva desde o acidente de Ayrton Senna, em 1994.
Os carros da Porsche e outros esportivos luxuosos cobram o preço para embarcar o mais alto nível de segurança para atender a todos os critérios internacionais de exigência. Nas imagens feitas após os acidentes, é possível notar um grau enorme de conservação das cabines dos esportivos.
Mas ter um alto índice de segurança não é exclusividade dos milionários. As instituições de avaliação de segurança automotiva garantem que não é necessário desembolsar milhões de reais para se ter um veículo seguro.
“O preço não tem correlação direta com a segurança. Há probabilidades maiores de se estar mais protegido em um carro mais caro, mas não é uma regra”, afirma Alejandro Furas, secretário-geral da Latin NCAP.
Furas é um dos especialistas em segurança do Latin NCAP, um programa de avaliação de carros novos para a América Latina e Caribe, que oferece informação independente sobre os níveis de segurança que os diferentes modelos de veículos no mercado aos consumidores.
O órgão utiliza métodos de ensaio internacionalmente reconhecidos e qualifica entre 0 e 5 estrelas a proteção oferecida pelos veículos e para ocupantes adultos, crianças e pedestres. Para dar a nota, o órgão realiza uma série dos chamados “crash-tests”, e avalia como cada modelo se comporta em diferentes formas de acidentes.
Para início de conversa, a instituição define um habitáculo seguro como aquele que detém as devidas tecnologias para garantir a integridade de todos os ocupantes. São elas:
Barras de proteção nas portas;
Coluna de direção colapsável;
Carroceria reforçada nas colunas A, B e C;
Airbags frontais (painel e volante);
Airbags laterais (laterais de porta);
Airbags de cortina (janelas);
Airbag de joelho;
Airbags centrais (entre motorista e passageiro da dianteira);
Airbag de cinto.
Furas explica que não basta a quantidade, mas leva-se em conta a qualidade dos itens adicionados aos veículos. O ponto principal é a eficiência dos equipamentos de segurança.
“Não é qualquer cinto ou qualquer airbag que funciona. É como ele abre, qual é a pressão, o desenho da peça, adequação do funcionamento da bolsa inflável com os demais itens da cabine”, diz o especialista.
Por vezes, é isso que separa o Porsche 911 de Sastre Filho do Renault Sandero de Ornaldo Viana.
Carros de luxo costumam ter projetos globais, vendidos no mundo todo, com os itens mais refinados e adequados para qualquer legislação de segurança. Veículos mais baratos podem sofrer adaptações de acordo com o mercado em que são comercializados.
A diferença de volume dos airbags laterais dos Sandero de exportação e nacional chega a quatro litros
Divulgação | Latin NCAP
O Latin NCAP, por exemplo, comparou os Sandero, Logan e Stepway que eram produzidos na Colombia (para exportação) e os produzidos na Argentina e Brasil para o mercado local. A diferença de volume do airbag lateral chega a quatro litros, de 18 litros para os locais e 22 litros para os exportados. (veja na imagem acima)
“Os veículos fabricados na Colômbia mostraram uma intrusão estrutural um pouco menor no teste de batida de impacto lateral do que os carros fabricados para o Mercosul”, diz nota do LatinNCAP em 2019 sobre o Sandero, que obteve apenas uma estrela no teste e saiu de linha tanto aqui como no exterior.
“É provável que os motivos se devam à diferença de materiais e/ou diferenças nos processos de produção”, afirma o texto.
Furas afirma que é a legislação do país que deveria democratizar e exigir das fabricantes projetos e equipamentos mais eficientes. “O carro popular é o que tem que ter a maior evolução em segurança porque é o veículo utilizado pelo trabalhador, que compra um bem com muito esforço e não tem margem financeira para atender a sua família se algo acontecer”, diz.
Estrutura do banco é outro fator que influencia na segurança dos ocupantes
Divulgação | Latin NCAP
Deixando de lado o comparativo entre um carro de luxo e um popular, Furas lembra de um episódio no Uruguai, em que houve uma colisão entre um Ford Ka e um Volkswagen Nivus. O Ka teve nota zero no Latin NCAP, enquanto o Nivus alcançou a nota máxima de cinco estrelas para proteção de adultos.
“No Nivus, havia cinco adultos e, a despeito de alguns ferimentos, todos sobreviveram. No Ka, os dois únicos passageiros da dianteira, que contavam com airbag, morreram”, revelou Furas.
Dos 10 carros mais vendidos do Brasil, segundo o ranking de emplacamentos da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave), estas são as notas atribuídas pelo Latin NCAP na proteção para adulto:
Volkswagen Polo: 3 estrelas
Fiat Strada: 1 estrela
Chevrolet Onix: 5 estrelas
Hyundai HB20: 3 estrelas
Fiat Argo: zero
Fiat Mobi: 1 estrela
Volkswagen T-Cross: 5 estrelas
Hyundai Creta: 4 estrelas
Chevrolet Onix Plus: 5 estrelas
Chevrolet Tracker: 5 estrelas
Ford Ka não obteve nenhuma estrela no teste realizado em 2020
Divulgação | Latin NCAP
Já os carros importados mais vendidos do Brasil são da chinesa BYD. O híbrido Song e os elétricos Dolphin e Dolphin Mini estão no pódio entre os três importados mais vendidos.
O Dolphin Mini ainda não foi testado pelo Asean nem pelo Euro NCAP, correspondentes do Latin NCAP na Ásia e na Europa. Os outros dois receberam 5 estrelas.
Já os carros de luxo mais vendidos foram os BMW X1 e série 3 e o Volvo XC90. Sem nenhuma surpresa, todos gabaritaram no crash-test.
A lataria é importante
Uma cabine ultrarresistente não basta para preservar a vida dos passageiros. A principal mudança estrutural na parte externa de veículos modernos é o material utilizado na lataria para garantir uma deformação planejada e programada.
Fabrício Cardinali, engenheiro mecatrônico com quase 20 anos de experiência na área de segurança da Fiat-Chrysler (hoje Stellantis), lembra que automóveis produzidos até a década de 1990 eram fabricados exclusivamente com aço, sem desenho adequado para absorver impactos.
Antes, o para-choque era rígido e fixado nas longarinas (que são as estruturas que suportam todo o carro, do capô até o porta-malas). Hoje, os para-choques são feitos de plástico e não são fixados na parte estrutural do carro.
Arte mostra a deformação programada de um SUV da Volvo
Divulgação | Volvo
Essa mudança de disposição ajuda a suportar toques leves sem comprometer a estrutura do carro e, em casos mais graves, absorver parte dos impactos de acidentes. As longarinas têm deformação programada, com ranhuras bem delineadas e que ajudam a suprimir a violência de uma batida mais grave.
“Alguns projetos são contemplados com peças que atravessam todo o carro e dispersam a grandeza do impacto no final do carro, no porta-malas”, elucidou Cardinali.
De acordo com Furas, do Latin NCAP, a introdução de outros materiais, como o alumínio, fez muita diferença no resultado final das carrocerias modernas, e que as montadoras passaram a dar prioridade para resistência na cabine.
“As empresas perceberam que o restante (frontal, traseira e lateral) deve sofrer deformações para absorver energia. Voltamos ao exemplo do carro de fórmula: tudo fica intacto onde está o piloto, enquanto o restante é completamente destruído”, disse.
No crash teste realizado entre dois Nissan: um Versa 2015 e um Tsuru, projeto dos anos 1990. Veja como a cabine se deforma no carro vermelho, enquanto no sedã prata há maior resistência do habitáculo
Divulgação | Latin NCAP
O que mais faz um carro ser ‘cinco estrelas’?
O Latin NCAP avalia a segurança desde as versões mais básicas disponíveis no mercado, com o objetivo de estimular as fabricantes a melhorarem o desempenho em segurança de seus carros à venda na região.
Além disso, o órgão também busca incentivar os governos a aplicarem regulamentações exigidas pelas Nações Unidas quanto aos testes de colisão.
“A ideia principal da nossa organização é democratizar a segurança em um carro: ter a mesma segurança de um carro europeu sem ter que pagar mais por isso. A regulamentação brasileira para segurança dos carros está pelo menos 20 anos atrasada em comparação com a legislação da Europa”, finalizou Alejandro Furas.
Para o Latin NCAP, um carro minimamente seguro deve ter:
Seis airbags;
Proteção ao pedestre;
Controle de estabilidade;
“Ainda não é exigido, mas entendemos que alerta de colisão frontal e frenagem de emergência também deveriam entrar como equipamentos de série para os carros comercializados na região”, disse Furas.
Em suma, o Latin NCAP leva em conta os ferimentos em ocupantes, pedestres e motociclistas, além da presença de equipamentos de assistência à condução, como o piloto automático adaptativo e frenagens de emergência.
VW Nivus conseguiu a nota máxima no crash test realizado em 2022
Divulgação | Latin NCAP
Pontos verificados pelo Latin NCAP:
Ferimentos em adultos;
Ferimentos em crianças;
Ferimentos em terceiros (pedestres, ciclistas e motociclistas);
Equipamentos de assistência à condução.
“Não adianta o carro ter ótima segurança para adultos, crianças e um nível excelente de assistência ao motorista. Se tiver um desempenho ruim na proteção para pedestre, vai penalizar o resultado do carro”, alega o executivo.
➡️As lesões para ocupantes são medidas pelos ferimentos percebidos nos ocupantes por meio de bonecos (os “dummies”). O instituto avalia se o veículo conseguiu evitar que os ocupantes tenham ferimentos graves. Quanto mais lesões, pior é a nota do carro.
➡️As lesões para pedestres também são medidas através de “dummies”, em que partes do corpo de um pedestre são projetadas contra o carro para determinar onde e como ocorrem os traumas.
“Carros com a dianteira mais alta, como nos casos de SUV e picapes, tendem a perder pontuação porque o impacto é mais agressivo, o que tem comprometido a capacidade de dar boa proteção para os pedestres”, argumenta o secretário do Latin NCAP.
➡️ Já quando se fala sobre tecnologias de segurança, existe uma diferenciação importante: a passiva e a ativa.
A segurança passiva é a mais conhecida, porque ela é responsável por manter a integridade dos ocupantes quando já não há mais alternativas e a colisão é certa; cinto de segurança, airbags e proteções laterais nas portas fazem parte da lista de equipamentos de segurança passiva.
️A segurança ativa é chamada assim justamente porque ela deve entrar em ação antes da colisão, ou seja, ela é a protagonista no momento de evitar, ou minimizar, o impacto. E é aí que entra uma outra sigla: ADAS.
O ADAS (Advanced Driver Assistance System), que em tradução livre quer dizer “sistema avançado de assistência ao motorista”, é uma central que reúne diversas tecnologias que auxiliam o condutor a dirigir livre de perigos.
Nesse sistema, estão presentes equipamentos como:
Piloto automático adaptativo;
Frenagem de emergência;
Monitor de ponto cego;
Alerta de colisão frontal;
Assistente de permanência em faixa;
Câmera 360º;
Direção semiautônoma;
Identificador de placas.
E é por isso que o Latin NCAP passará a avaliar a eficiência desse sistema (em automóveis equipados com ele) em 2026.
De acordo com Furas, “carros que possuem nota baixa para proteção de pedestre têm a possibilidade de compensar isso com tecnologias de assistência à condução, como a frenagem autônoma de emergência, que para o carro ao identificar o risco de atropelar um pedestre”.
“Mas essa tecnologia ainda não evita 100% dos acidentes. Ainda falta pelo menos uma década para chegarmos a um funcionamento perfeito do ADAS. Até lá, continuaremos precisando de carros com estruturas que não sejam tão agressivas aos pedestres”, defende o secretário.
Um exemplo de carro que pode ser agressivo aos pedestres é a Cybertruck da Tesla, já testada pelo g1. A picape tem revestimento de aço inoxidável e, segundo estudos dos institutos norte-americanos de segurança veicular, é possível que as notas da picape elétrica deixem a desejar para acidentes com pedestres.
Conforme alegou o secretário geral do Latin NCAP, por conta da quantidade de SUVs lançados nos últimos anos na América Latina, haverá uma mudança da exigência no crash-test lateral. O que explica essa mudança é o peso dos utilitários esportivos que, por serem maiores, acarretam batidas mais violentas.
“Um carro mais pesado e mais veloz traz mais impacto para a estrutura lateral, o que vai forçar as montadoras a trabalharem melhor na estrutura da carroceria e airbags laterais”, afirmou Alejandro Furas.
Modelos envolvidos nos mais recentes acidentes envolvendo carros de luxo: Porsche 911, 718 Cayman e 718 Boxster
Divulgação | Porsche



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