O cotidiano da favela retratado pelas lentes de um apaixonado pelas relações humanas. De uma esquina da Rua Principal com a Sargento Silva Nunes, na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, Bira Carvalho construía relações e delas surgiam fotografias. Milhares. Estima-se que seu acervo tenha mais de 17 mil imagens.
Presente de Natal: Após escrever para Papai Noel, aluna de balé ganha sapatilhas de Ana Botafogo
Cadeirante desde que levou um tiro, aos 22 anos, Bira sobrevivia com uma pensão do INSS e passava por uma depressão, quando descobriu a fotografia numa oficina no Morro do Timbau, na Maré, no final dos anos 1990. Seguiu estudando até virar um dos integrantes do projeto Imagens do Povo, banco de imagens que surgiu em 2004 e é fruto de uma parceria do Observatório de Favelas com o Unicef. Foi coordenador do projeto de 2017 a 2020:
“A fotografia humanista documental que aprendi aqui fez com que eu me apaixonasse pela vida, me tirou das trevas. A luz da fotografia fez isso”, disse em entrevista ao GLOBO em 2014.
Em 2019, teve sua história contada no curta “Descolonize o olhar”, produzido por coletivos de jovens comunicadores do Complexo do Alemão. Em 2007, o fotógrafo e outros 27 profissionais formados na primeira turma da Escola de Fotógrafos Populares (EFP), do Complexo da Maré, foram escolhidos na categoria Revista O GLOBO para a quinta edição do Prêmio Faz Diferença. Na noite da premiação, fez questão de homenagear os colegas e moradores das favelas do Rio:
“As pessoas que merecem esse prêmio não estão aqui. São as que ficaram lá onde moro, no interior do Brasil ou em algum lugar no Rio, as que contribuem para o crescimento do nosso país. Eles fazem diferença. Eu só tenho o prazer de registrá-los”.
Imagens feitas pelo fotógrafo Bira Carvalho, do Complexo da Maré
De aluno da primeira turma da EFP — para subir as ladeiras do Morro do Timbau na cadeira de rodas, passou a praticar musculação — virou o coordenador, anos depois, do Imagens do Povo. Bira levou sua paixão pela fotografia por toda a vida que terminou na madrugada da última segunda-feira, quando morreu em casa. Ele se autodefinia como um “fotógrafo rueiro”.
— A preocupação dele não estava em fotografia como objetivo final. O objetivo final é construir relações. A fotografia nasce a partir dessas relações. Por isso que ele é a única pessoa capaz de fotografar a favela da forma como ele fotografou a vida inteira, porque aquilo é consequência quase que espontânea das relações humanas. Se autodefinir como rueiro é um pouco disso. O escritório dele era a rua. Ficava numa esquina clássica na rua principal com câmera na mão e passava o dia produzindo, se relacionando com as pessoas essencialmente — descreve Lino Teixeira, pesquisador da área de Políticas Urbanas do Observatório de Favelas.
Bira foi morar na Nova Holanda adolescente e viveu lá até o fim da vida. Além da fotografia, sua outra paixão era o esporte, principalmente a natação.
Apesar da sua partida precoce, aos 51 anos, Bira deixa um legado de arte e inúmeros amigos. Teixeira ressalta que suas fotografias extrapolam os limites da Maré:
— Bira é um fotógrafo fundamental para o mundo contemporâneo. Não só para a fotografia e para a arte, mas para a cultura como um todo. A produção dele era revolucionária em vários aspectos e era uma pessoa muito especial na forma de lidar com a arte e com a vida. A coisa mais importante para ele eram a relação que tinha com a favela da Nova Holanda, território dele que ele amava profundamente, e a relação com as pessoas.
Bira foi sepultado nesta terça-feira no Cemitério do Caju.
Fonte: G1