Grávida, Vanessa Sales Félix acompanhou a operação de guerra montada pelas forças de segurança para retomar o Complexo do Alemão, há dez anos. Entre tanques e fuzis, ela viu surgir a esperança de uma comunidade livre da violência para criar sua primeira filha. Ágatha nasceu quatro meses depois num ambiente diferente daquele que sua mãe e seus avós conheciam: sem tiroteios, traficantes armados ou disputas sangrentas. Mas a paz não durou muito, e uma tragédia jogou por terra tudo em que Vanessa acreditava. Um tiro de fuzil, disparado por um PM, matou sua filha de 8 anos, em 2019.
— Eu vejo a ocupação como um projeto falido. Os policiais entraram sem experiência e precisaram sobreviver aqui, acuados. Os conflitos mataram muitos inocentes, incluindo a minha menina, tirada brutalmente de mim. A minha história poderia ter sido diferente — disse Vanessa, que mora no Alemão desde que nasceu.
Hoje, ela mantém vivas as lembranças e planeja o futuro:
— Por diversas vezes, não consegui dormir em casa durante a tomada do Alemão, por medo. Deixei de ir trabalhar alguns dias. Moro na mesma casa desde que nasci e vejo as crianças como nosso futuro. Penso em engravidar de novo e criar um grupo de apoio às mães que perderam seus filhos. Falar como sobrevivi pode ajudá-las a superar.
No início da tarde de 25 de novembro de 2010, tanques da Marinha subiram a Vila Cruzeiro, na Penha. Sem poder de reação, bandidos fugiram pela mata em direção ao Morro do Alemão, uma imagem que marcou uma vitória da segurança pública do Rio. Três dias depois, num domingo, a maior operação já vista — com a participação do Exército e de forças estaduais e federais — tomou em poucos minutos todo o Complexo do Alemão, resgatando uma população de mais de cem mil pessoas do domínio do tráfico.
Uma década de esperanças e retrocesso
Mas, para moradores, o sentimento que fica, hoje, é a frustração.
— Nós vivemos anos muito complicados com o tráfico ditando regras e estabelecendo normas sobre a nossa vida. A pacificação trouxe um sopro de esperança que durou meses. Hoje, já não sei mais se o Alemão terá dias de paz novamente — desabafa uma moradora.
Símbolos de uma integração dos dois complexos de favelas à cidade do Rio e de um “boom” econômico, serviços instalados nas comunidades deixaram de ser oferecidos com o passar dos anos: teleférico, agências bancárias e mercearias fecharam. Uma unidade das Casas Bahia, inaugurada em 2014 na Rua Joaquim de Queiroz, fechou no ano passado após furtos e assaltos. O cinema, sem contrato, deverá reabrir em 2021.
— Nós vimos o sentimento de pertencimento à cidade indo embora junto com os serviços. Deixamos um pouco de nos sentirmos cidadãos também — comenta X., morador do Complexo do Alemão há 25 anos.
O fotógrafo Bruno Itan, ex-morador do Alemão, sabia que aquele seria um momento histórico. Ele, que começou na profissão a partir de um curso promovido pelo governo federal com o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), viu na operação a oportunidade para ganhar experiência. Nem o perigo o impediu de ir às ruas.
— Fotografei em meio aos tiros, com a minha vida em risco. PMs me pararam num beco e mandaram eu apagar as imagens, porque havia muitas fotos deles. Neguei e eles disseram que eu poderia “levar uma bala perdida ali”. Fui ameaçado. Senti o recado que quiseram mandar.
A tomada do Alemão, trouxe, segundo moradores, esperanças de um futuro melhor e de uma paz definitiva. Sonhos não concretizados.
— Para nós, que vimos a bandeira nacional ser hasteada no alto do morro como um sinal de domínio do Estado, é triste ter que conviver de novo com a rotina do tráfico de drogas escancarado na porta das nossas casas. Além dos confrontos quase diários.

Fonte: Fonte: Jornal Extra