regras para operações policiais geram debate


Estátua da Justiça em frente ao STF
Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Estátua da Justiça em frente ao STF

A megaoperação policial realizada durante a segunda-feira (28) nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, deixou 132 mortos , incluindo 4 policiais, segundo a Defensoria Pública informou ao iG

O cenário acabou provocando o questionamento sobre a efetividade das determinações do Supremo Tribunal Federal (STF)  sobre a ADPF 635, a chamada “ADPF das Favelas” . A ação busca justamente frear a letalidade policial e estabelecer parâmetros de controle para incursões em áreas periféricas.

O que é a ADPF das Favelas?

ADPF é a sigla para Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que é um mecanismo jurídico que permite ao STF atuar como guardião da Constituição, intervindo quando direitos fundamentais previstos na Carta Magna são desrespeitados e não encontram solução em outras vias judiciais.

Embora já estivesse prevista na Constituição de 1988, a ADPF passou a ser regulamentada apenas em 1999. Desde então, outras milhares de ações do tipo já foram protocoladas, envolvendo diferentes áreas e temas de interesse público.

O nascimento da chamada ADPF das Favelas tem relação direta com a situação de alta letalidade policial e operações violentas no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. 

Em 2016, a Defensoria Pública do Estado, em conjunto com a organização Redes da Maré, ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP), que foi acatada pelo Tribunal de Justiça.

A ACP se tornou um marco por ser a primeira ação coletiva voltada à segurança pública em favelas, resultando em uma redução de 25% das mortes em operações policiais na Maré entre 2017 e 2018.

O resultado foi fruto de decisões judiciais preliminares acompanhadas por monitoramento contínuo e participação ativa de moradores e instituições locais.

A experiência bem-sucedida acabou inspirando a mobilização de diferentes órgãos, instituições e organizações, que formalizaram, em 2019, a ADPF 635, popularmente conhecida como ADPF das Favelas.

O objetivo central era garantir, de forma ampla e permanente, o cumprimento dos direitos constitucionais nos territórios periféricos do Rio de Janeiro.

O que essa ação prevê?

A ADPF das Favelas determina diversas medidas para tornar as operações policiais mais seguras e alinhadas à Constituição. Entre elas, estão o uso de câmeras com gravação de áudio, a presença de ambulâncias e socorristas durante as ações, o respeito ao perímetro escolar e a restrição do uso de helicópteros como plataformas de disparo. 

O dispositivo também exige a realização obrigatória de perícias em casos de mortes, a implementação de um plano de redução da letalidade policial com metas claras e o fortalecimento de políticas públicas de segurança voltadas para ações preventivas, e não apenas repressivas, entre outras medidas.

Decisão do STF sobre operações policiais no Rio

Operação no Alemão e na Penha (RJ)
Fernando Frazão/Agência Brasil

Operação no Alemão e na Penha (RJ)

Em 2020, após decisão liminar do ministro Edson Fachin, e depois pelo plenário, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que as forças de segurança do Rio só realizassem operações nas comunidades fluminenses em situações excepcionais, devidamente fundamentadas.

O STF também vetou o uso de helicópteros como plataforma de tiro, restringiu operações policiais em perímetros escolares e hospitalares, determinou a preservação dos vestígios da cena do crime e também que se evitasse remoções de corpos para a realização de perícia.

Em abril de 2025, a Suprema Corte homologou parcialmente o plano de redução da letalidade policial do estado do Rio de Janeiro, no âmbito da ADPF 635, ou ADPF das Favelas. 

Dessa forma, a Corte determinou que o Estado complementasse o plano com ações de reocupação territorial de áreas controladas por organizações criminosas e a instauração de inquérito da Polícia Federal para apurar crimes com repercussão interestadual e internacional.

A decisão foi voltada para o que foi chamado de “natureza estrutural” do problema. 

Entre as medidas previstas, estavam a instalação de câmeras nos uniformes policiais, a instituição de um protocolo de comunicação das operações e as notificações ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro sobre as operações, possibilitando seu acompanhamento.

Análise sobre a ADPF das Favelas: visões divergentes sobre os impactos nas operações policiais

O Portal iG entrevistou  Raquel Gallinati, diretora da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), especialista em Direito Penal e Segurança Pública e mestre em Filosofia, e João Otávio Spilari Goes, advogado especialista em Direito Processual Civil, que analisaram os efeitos da ADPF das Favelas (ADPF 635) nas operações policiais do Rio de Janeiro.

Para Gallinati, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) impôs “severas restrições às operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro” , resultando em “dificuldade concreta no combate ao narcotráfico e na expansão do poder das facções criminosas”.

Ela afirma que, apesar do plano apresentar o discurso de proteção à vida, “as medidas impostas pelo STF dificultam a atuação policial e comprometem a eficácia das operações” , citando regras como a proibição de operações noturnas e o uso de helicópteros, além da necessidade de comunicação prévia às áreas de saúde e educação.

Em contraste, Goes avalia que a ADPF das Favelas representou um avanço importante, mas também trouxe desafios operacionais. Segundo ele, “a ADPF das Favelas traz consigo algumas situações interessantes” , destacando que o Supremo optou por um voto per curiam , ou seja, um posicionamento único do colegiado, o que “não é uma prática comum do STF”.

Ele ressalta ainda que o plano de redução da letalidade policial apresentado pelo Estado do Rio foi “parcialmente homologado pelo Supremo” , configurando uma “construção conjunta dessas diretrizes”.

Para o advogado, a decisão reconhece tanto a omissão do Estado na proteção de direitos fundamentais quanto as violações cometidas por organizações criminosas.

Ele pondera, contudo, que pontos como o uso de helicópteros e a suspensão de sigilos operacionais foram indeferidos, o que reduziu tensões práticas. Por isso, afirma que:  “não vejo como afirmar que essa ação direta gera algum tipo de prejuízo às operações policiais no Rio de Janeiro”.

A diretora da Adepol afirma que a limitação das operações abriu espaço para o fortalecimento do crime:

O que deveria ser um instrumento de proteção aos direitos fundamentais acabou gerando o efeito inverso: a limitação das forças de segurança abriu espaço para o fortalecimento das organizações criminosas, que passaram a atuar com maior liberdade”. 

Ela acrescenta que a medida “agravou o cenário de insegurança pública, prejudicando milhões de moradores das áreas afetadas e fragilizando o enfrentamento ao narcoterrorismo”.

Por sua vez, o advogado ressalta que as medidas de fiscalização e controle não comprometem necessariamente a atuação policial: 

“Dentre as medidas, algumas de publicização visam divulgar os dados e informar qual corporação estava envolvida, qual batalhão, se o agente estava em serviço ou à paisana. Há também câmeras e GPS identificando os policiais. Embora o policial se sinta talvez muito mais vigiado, não me parece uma ferramenta invasiva ou que possa prejudicar algum tipo de operação. Também considero que pode gerar um benefício indireto na preservação de vidas de moradores e agentes de segurança” , discorre.

Sobre o equilíbrio entre combate ao crime organizado e direitos fundamentais, Gallinati é enfática: 

“A restrição das operações em áreas dominadas por facções não trouxe pacificação, mas fortaleceu o crime organizado. A redução das intervenções permitiu que as organizações criminosas expandissem seu controle territorial e passassem a operar com armamento pesado e estrutura logística sofisticada”. 

Ela também pontua que criminosos de outros estados migraram para o Rio de Janeiro, transformando o estado em refúgio seguro para atividades ilícitas.

Goes, em contraponto, afirma que: “Em relação ao equilíbrio entre combate ao crime organizado e a garantia dos direitos fundamentais da população residente em áreas de favela me parece que caminham juntos”. 

Ele ainda complementa dizendo que a repressão dentro dos limites legais assegura os direitos de todos, tanto policiais, moradores e até mesmo daqueles que infringem a lei, já que, em um Estado Democrático de Direito, o império deve ser da lei, e não da vontade individual.

Sobre o planejamento e comunicação prévia das operações, Raquel argumenta que “essas exigências comprometem a eficácia e a segurança das ações policiais” e tornam as operações previsíveis. 

Enquanto João considera que “ainda é muito cedo pra gente fazer qualquer tipo de juízo de valor sobre descumprimento ou não descumprimento que ficou estabelecido”. 

Ele ainda diz que: “é preciso investigar o porquê isso ocorreu, se houve realmente algum excesso, o motivo que acabou levando essas pessoas a óbito e depois de ser apurado para identificar o contexto dessas mortes, se foi uma situação praticada em legítima defesa ou se ocorreu algum excesso ou se algum abuso ficou caracterizado na ação”.

Por fim, sobre políticas públicas e investimentos para reduzir a letalidade sem enfraquecer a segurança, Gallinati defende: 

“Após anos de vigência dessa política restritiva, os resultados são claros: a violência aumentou e o crime se fortaleceu. A redução da letalidade policial só será possível com investimentos em inteligência e tecnologia, capacitação contínua dos agentes, integração entre policiais e órgãos de justiça, e presença permanente do Estado nas comunidades — não apenas pela via policial, mas com políticas sociais complementares”.

Goes complementa: “Vejo que tem que tentar, cada vez mais, conseguir investimentos onde o governo possa reprimir e fiscalizar essas áreas, porque um estado ausente torna o crime presente. Investimentos em armamento, treinamento policial e também treinamento psicológico para os agentes são fundamentais. Acredito que se conseguirmos caminhar com tudo isso e melhorar a estrutura, conseguiremos reduzir a letalidade policial, manter a segurança pública e preservar os direitos fundamentais”.



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