Metanol: fígado vira 'vilão' e transforma bebida adulterada em veneno silencioso; entenda




Metanol: fígado vira ‘vilão’ e transforma bebida adulterada em veneno silencioso
Ao ingerir uma bebida alcoólica adulterada com metanol, é justamente o fígado — órgão que costuma proteger nosso organismo de toxinas — que vira o grande “vilão” no processo de intoxicação.
➡️Por quê? Em vez de metabolizar a substância para que ela seja processada facilmente, ele a transforma em compostos ainda mais perigosos, capazes de provocar cegueira e de levar à morte:
formaldeído, muito reativo, mas rapidamente convertido em…
…ácido fórmico, considerado o verdadeiro veneno neste quadro.
“O fígado é como o ‘laboratório químico’ do corpo. Sua principal função é transformar substâncias tóxicas em compostos menos perigosos, por meio de enzimas”, explica Felipe Lukacievicz Barbosa, coordenador do curso de Farmácia da Universidade Positivo.
“No caso do etanol (álcool comum), essa estratégia funciona bem. Já no do metanol, ele gera compostos que atacam as células. É um veneno silencioso.”
Nesta reportagem, hepatologistas e professores explicam:
como o fígado metaboliza substâncias como o etanol e o metanol;
por que o metanol, em especial, vira veneno dentro do organismo;
o papel das mitocôndrias na perda de energia celular;
os efeitos da acidose metabólica provocada pelo ácido fórmico;
como o tratamento age para impedir que a intoxicação avance.
Por que o fígado age corretamente com o etanol?
Quando alguém ingere etanol, tomando cerveja ou vinho, por exemplo, o fígado cumpre sua função:
converte esse tipo de álcool, por meio da enzima ADH (álcool desidrogenase), em acetaldeído;
em seguida, outra enzima, a ALDH (aldeído desidrogenase), transforma o acetaldeído em acetato, que é descartado pelo organismo sem grandes danos.
Os problemas de saúde costumam surgir a médio ou a longo prazo: as células do fígado (hepatócitos), após anos de consumo abusivo, podem sofrer um dano crônico e cumulativo, levando a quadros de cirrose e de insuficiência hepática.
🔴Com o metanol, a história é completamente diferente. Ele também é um álcool (tanto que termina com “ol”), mas com apenas um átomo de carbono, e não dois.
O fígado, que não está habituado a receber esse tipo de substância, “se atrapalha”: ao tentar metabolizar o metanol, acaba fabricando os dois compostos extremamente tóxicos mencionados no início da reportagem (o formaldeído e o ácido fórmico).
“É como se o fígado acreditasse que está cumprindo sua função, mas, em vez de neutralizar [o metanol], produz substâncias ainda mais perigosas”, explica Natália Trevizoli, hepatologista do Hospital Sírio-Libanês (SP).
Lisa Saud, médica especialista do Hospital 9 de Julho (SP), traça uma comparação:
“O etanol pode provocar consequências em 10 ou 15 anos de abuso. Já o metanol age em poucas horas. É um mecanismo totalmente diferente”, explica.
Por que o ácido fórmico é tão danoso?
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1- ‘Fábrica de energia’ afetada
O ácido fórmico ataca justamente as mitocôndrias, organelas responsáveis pela respiração celular. Ele inibe a ação da enzima citocromo c oxidase, essencial para a produção de ATP (molécula orgânica que armazena energia).
“Sem ATP, é como se tirássemos os tecidos da tomada. Eles deixam de ter energia para funcionar”, explica Marcus Barbosa, médico e professor da Unifran.
Os primeiros a sofrer são aqueles que mais dependem de energia:
no nervo óptico → o que explica os casos de cegueira registrados na Grande São Paulo;
no sistema nervoso central → provocando sonolência, confusão mental e, em casos graves, coma.
2- Sangue mais ácido
Além de cortar a energia celular, o ácido fórmico ainda reduz o pH do sangue, tornando-o mais ácido.
“O organismo humano precisa manter o pH em torno de 7,40. Quando esse valor cai, ocorre a chamada acidose metabólica, que faz várias funções entrarem em colapso”, afirma Felipe Lukacievicz Barbosa, farmacêutico e professor da Universidade Positivo.
Ele lista as principais consequências:
coração: arritmias e perda de força contrátil;
rins: agravamento de lesões;
músculos: fadiga intensa;
respiração: aumento da frequência, em uma tentativa de compensar o desequilíbrio químico.
A professora Meire de Bartolo, do Colégio Bandeirantes, faz uma analogia: “É como se os peixes de um aquário estivessem nadando em água que ficou ácida de repente. Eles não resistem. No corpo humano, esse ‘aquário’ é o sangue, e as células são os peixes”, diz.
“O nervo óptico será particularmente afetado tanto por essa acidose metabólica quanto pela falta de energia. Ele é constituído de células nervosas (neurônios) que são altamente sensíveis à redução de pH sanguíneo e que demandam muita energia para seu funcionamento.”
➡️Em resumo, após a ingestão de metanol, as etapas são:
Absorção gastrointestinal rápida → distribuição na água corporal → passagem predominante pelo fígado para oxidação → formação de ácido fórmico → acúmulo sistêmico, atingindo principalmente os olhos e o sistema nervoso central.
“Uma fração pequena pode ser eliminada inalterada por pulmões e rins, mas é insuficiente para proteger o organismo”, diz Natália Trevizoli, do Sírio-Libanês.
O papel do fígado no tratamento
O fato de o fígado ser o responsável por converter o metanol em veneno explica por que os antídotos usados — como fomepizol (que não é comercializado no Brasil) e o etanol — agem justamente nesse órgão.
“Eles competem com o metanol pela mesma enzima, a álcool desidrogenase”, detalha Natália Trevizoli. É como se mantivessem essas enzimas ocupadas.
“Bloqueiam a primeira reação, impedindo que o metanol vire formaldeído e ácido fórmico. Isso dá tempo para o corpo eliminar a substância antes que ela cause sequelas irreversíveis”.
Mas, para que isso funcione, é necessário agir rapidamente, antes que o quadro evolua para cegueira, falência múltipla de órgãos e morte.
Existe alguma outra situação em que o fígado também aja de forma perigosa?
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Trevizoli, do Sírio-Libanês, cita dois exemplos:
Um caso bastante conhecido é o do etilenoglicol, usado como anticongelante em radiadores de carros e em sistemas de refrigeração. É altamente tóxico para humanos.
“Quando o fígado tenta processar essa substância, ele acaba gerando ácidos que danificam os rins e levam à acidose”, diz a hepatologista.
Há também o uso do paracetamol em superdosagem.
“Nessa situação, o fígado transforma o remédio em um metabólito altamente reativo, chamado NAPQI, que pode causar falência hepática”, afirma a médica.
“O mesmo órgão que deveria nos proteger contra substâncias nocivas acaba, em alguns casos, fabricando compostos ainda mais tóxicos.”
Infográfico: o impacto do metanol no corpo humano.
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