“Por que nos afogamos no rio da vida”, por Amanda de Moraes


Somos moldados a todo momento por discursos, doutrinas, livros, ideologias. Assim, o ser humano se constrói, mas descontrói. Recriamos a nossa realidade. Pensamentos de outrora já não fazem mais sentido. Outros são mantidos como pilar de nossas vidas.  O mundo das ideias, a capacidade de questionar, a reflexão sobre o mundo permite que sejamos como os rios, em constante fluxo. É a metáfora sobre a correnteza da existência.

Água parada perde vitalidade. Torna-se turva. Prolifera doenças. Quando em movimento, traz vida. Oxigena-se, nutrindo a si mesma e aos que estão ao seu redor.  Somos feitos de  água. Precisamos do movimento para respirar melhor, liberar o acúmulo de frustrações e conseguir enxergar a vida a partir de outras perspectivas.

A fluidez da vida não condiz com certas doutrinas, que insistem em fazer uma lista sobre o propósito universal: “Mulher, sujeite-se a seu marido, pois ele é a cabeça da esposa.” Mais duas: “A mulher foi feita para o homem.” ou “O casamento é a realização maior, ainda mais se a mulher for temente ao homem e, com ele, procriar.”

Assim, desde a infância, crianças são ensinadas que, ao longo do tempo, só existe uma faceta. Que não pode ser diferente. Que não há outro olhar a não ser o que impuseram a ela, em uma espécie de salvação.

Se assim fosse, raciocínio e senso crítico seriam dispensáveis à espécie. Se delegarmos as nossas decisões a outra pessoa, para que pensarmos ou ter o livre-arbítrio? Tudo seria um script, em extensão PDF (leia-se impossível de editar) diante dos nossos olhos.

Existem tantas possibilidades quantos seres humanos no planeta. Cada um é um ser em construção, com gostos, desejos, anseios individuais, traumas, paixões, limitações, comportamentos, cultura. Algumas situações ilustram bem. Uns querem casar. Outros desejam uma vida sem compromisso marital. Muitos desejam ter filhos. Há aqueles que preferem a vida sem o compromisso da criação. Há homens que gostam de se relacionar com homens. Mulheres que amam outras mulheres. Gente que crê nos Dez Testamentos; gente que nunca soube do Livro Sagrado. Acredite! Existem pessoas que adoram viver em apartamentos. Outros precisam da vida em comunidade e do contato com a natureza. Assim é o mundo, com inúmeras possibilidades.

Muitas vezes buscamos nos encaixar em circunstâncias que não nos servem, como um sapato apertado, que só dá calo. Fazemos isso para nos enquadrar. Para batermos metas. Para quitar dívidas mensais, como a conta de água e luz. Para vivermos um roteiro que disseram que era o ideal. No entanto, nascemos com a alma que anseia suas próprias escolhas, apesar do medo.

Com qual sentido mesmo? Essa é uma questão importante para que o rio flua, com propósito. Até porque ele e o ser humano não cabem em uma caixinha. Pertencem à vastidão do universo. E cada um precisa ter espaço para contribuir com o seu melhor. Gente que faz aquilo de  que gosta está mais preparada para salvar vidas, melhorá-las e encantar no sentido pleno. Sem o espaço individual, sem o exercício dos direitos que lhe são garantidos, sem autonomia para o erro e o acerto, é apenas utópico crer em alguém, de fato, realizado. Felicidade, aliás, está na coragem de ser quem nós somos. E quando encontramos alguém que nos incentiva e prepara para isso, podemos encorajar outros tantos a seguirem o rumo das virtudes e do humanismo. Uma delas? A justiça pautada pelo respeito às diferenças.

Amanda de Moraes Estefan é advogada, no Rio de Janeiro, e sócia do escritório Mirza & Malan Advogados. Ela é neta do ex-prefeito de Trajano de Moraes, João de Moraes
Amanda de Moraes Estefan é advogada, no Rio de Janeiro, e sócia do escritório Mirza & Malan Advogados. Ela é neta do ex-prefeito de Trajano de Moraes, João de Moraes

 



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