A marcha da insensatez – 3


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Hoje é domingo, 27 de julho de 2025. Do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, é possível esperar tudo — inclusive uma mudança súbita na ideia de punir o Brasil com as tarifas de 50%. Isso é possível, mas parece cada vez mais improvável. Sendo assim, e a menos que haja uma mudança súbita no rumo dos acontecimentos — algo como o cavalo de pau num transatlântico, ao qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sempre se refere —, dentro de cinco dias as exportações brasileiras para os Estados Unidos passarão a ser taxadas com tarifas para lá de pesadas.   A despeito da esperança dos que ainda esperam uma solução repentina — como naqueles filmes de Hollywood, em que o herói invade a cena no minuto final e traz o código capaz de desativar a bomba nuclear —, o mais provável é tudo fique como está. E que a punição aplicada ao Brasil, alimentada pelas divergências entre dois países no cenário internacional e estimulada pela discordância de Trump em relação a decisões tomadas pelo Executivo e pelo Judiciário brasileiros, entre em vigor na próxima sexta-feira, dia 1º de agosto. Entre as divergências que estão por trás da decisão, as mais evidentes são os laços que, por iniciativa do Brasil, vinham se tornando cada vez mais estreitos com a China, a Rússia e o Irã, além do tratamento dado ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Mas a lista está longe de se restringir a esses pontos. Também pesam na balança, no caso das divergências com o Executivo, a insistência cada vez mais solitária do governo brasileiro em buscar uma alternativa ao dólar nas transações internacionais, a posição do Itamaraty em relação a Israel e mais uma longa lista de questões pontuais. No caso do Judiciário, além do tratamento dado a Bolsonaro — que remete a Trump à batalha que ele próprio enfrentou nos tribunais para ter o direito de se candidatar ao segundo mandato — há o descontentamento do governo americano com o cancelamento das punições aplicadas pela Operação Lava-Jato. Sim! Isso mesmo! E mais: a inércia da Justiça brasileira em relação à exportação da corrupção para outros países da América Latina, especialmente o Peru, e o silêncio diante do relacionamento considerado promíscuo com países como Cuba e Venezuela também fazem parte do cardápio de justificativas para a punição dos ministros alinhados com o governo.   Soluções mágicas   Diante de tudo isso — e sem deixar de registrar a arrogância que marca a forma com que Trump e seu governo vêm conduzindo essa questão —, a punição ao Brasil, a esta altura, parece um fato consumado. Tomara que a visão desta coluna seja desmentida por algum fato novo. Mas não se percebe no horizonte qualquer possibilidade de milagre de última hora capaz de impedir o desfecho da ameaça. Diante de um fato tão grave, que começou mal e evoluiu errado devido à mania dos dois principais envolvidos de não dar ouvidos ao que o outro tem a dizer, é melhor não esperar por soluções mágicas. Sendo assim, o mais provável é que, já na próxima semana, as exportações brasileiras para os Estados Unidos passem a sofrer os efeitos do tarifaço. Mas esse é apenas o começo do problema. Por mais bombástico que tenha sido o anúncio, os detalhes da decisão de Trump continuam sendo um mistério. Tudo que se sabe a respeito da medida é o que está escrito na carta enviada por Trump no dia 9 de julho e recusada por Lula no dia seguinte. Até a manhã de ontem, sábado, quando este texto foi concluído, não havia sido editada qualquer Instrução Normativa ou Nota Executiva que detalhasse os procedimentos em torno da cobrança das alíquotas. Nesse cenário, há mais dúvidas do que certezas. O que acontecerá com os produtos despachados antes do dia 1º de agosto que chegarem aos portos americanos depois dessa data? As alíquotas incidirão sobre produtos como o aço, cobertos por cotas de exportação previamente negociadas entre os dois países? Atingirão produtos encomendados com antecedência de meses e até anos, como os aviões da Embraer? As empresas afetadas poderão negociar seus casos individualmente e se livrar das sanções em troca, como já aconteceu com outros países, da promessa de investir em território americano? Que tratamento terão os transformadores made in Brazil, adquiridos por empresas americanas de tecnologia, que são os maiores consumidores de eletricidade da atualidade e precisam dos equipamentos para garantir a estabilidade de suas redes? Como serão tratados os produtos das empresas americanas que fabricam ou plantam no Brasil artigos que exportam para os Estados Unidos? E os bancos? Como ficarão nessa história? Ninguém tem, ainda, respostas para tais perguntas. E, enquanto elas não forem respondidas, é impossível medir a verdadeira extensão das restrições ao Brasil.   Seja como for, o mais sensato é imaginar que, pelo menos no primeiro momento, as restrições serão amplas, gerais e irrestritas. Nenhum dos dois lados parece disposto a recuar antes do outro e a solução para impasses dessa natureza sempre depende, para começo de conversa, da disposição para buscar o entendimento. Dependem, além disso, da habilidade das duas partes para negociar sem se deixar contaminar pelas picuinhas que levaram à discórdia. Dependem, enfim, de bom senso. Esses ingredientes — disposição, habilidade e bom senso — infelizmente, parecem distantes desse episódio lamentável. Embora os dois se digam abertos ao diálogo, nenhum assume publicamente a disposição de arredar o pé de sua posição sem que o outro ceda antes dele. Sendo assim, as tarifas de 50%, parecem ter vindo para ficar. E, pior, parece que o contencioso entre os dois países será mantido pelo menos enquanto Lula ou Trump estiverem no poder.   Ponto de Ebuliçõ A bem da verdade, Lula e Trump representam lados opostos da geopolítica mundial e as relações entre eles nunca existiram. Nenhum deles jamais fez qualquer gesto efetivo de aproximação em relação ao outro — no máximo, acenos formais, impostos por circunstâncias inevitáveis. No mais, tudo o que um sempre pareceu querer do outro foi distância. Antes das eleições brasileiras de 2022, num momento em seu nome já começava a despontar como favorito nas eleições americanas, que o levariam de volta à Casa Branca dali a dois anos, Trump declarou “apoio total e completo” a Jair Bolsonaro. Lula venceu e, em novembro passado, às vésperas das eleições que reconduziriam o republicano ao poder, declarou a uma emissora francesa sua torcida pela candidata democrata Kamala Harris. Mais do que isso, disse que a vitória de Trump significaria “o fascismo e o nazismo voltando a funcionar com outra cara”. Pois bem, Trump também venceu e Lula, no primeiro momento, o saudou com declarações amistosas. Depois disso, e mesmo com o tratamento amistoso que o americano deu ao Brasil na primeira lista de tarifas anunciadas por seu governo (quando taxou os produtos brasileiros com apenas 10%), a temperatura se pôs a subir até chegar perto do ponto de ebulição. O fato que mais parece ter contribuído para a fervura, é bom insistir nesse ponto, foi, de fato, o movimento do governo brasileiro — que parecia cada vez mais convencido da possibilidade de liderar, ao lado da China, da Rússia e de outros aliados, a cruzada capaz de reduzir o uso do dólar nas transações internacionais e, por consequência, diminuir a influência da economia americana no mundo. E assim, de desaforo em desaforo, de crítica em crítica, de pirraça em pirraça, a situação foi piorando sem que a diplomacia brasileira movesse uma palha para reconstruir as pontes que iam sendo queimadas por um lado e por outro. Atenção! Neste ponto, ninguém deve cobrar da diplomacia americana uma atitude tão proativa quanto a que deveria ter partido do Itamaraty. Afinal, por mais que os dois lados tenham a perder, nessa altura da crise já está claro para todo mundo que o Brasil será muito mais atingido. Isso mesmo! Como já foi dito nas duas edições anteriores desta coluna, mas nunca custa repetir, o impacto sobre o Brasil será muito maior do que sobre o outro lado. O abalo, no entanto, talvez não fique nítido logo no primeiro momento. O impacto inicial deverá ser discreto, quase imperceptível e lá pelo início de setembro certamente aparecerá alguém para dizer que, no final das contas, as alíquotas de 50% não causaram danos expressivos à economia brasileira. É preciso desde já prevenir para os riscos desse tipo de observação.   Esforço louvável  Daqui a cinco ou seis meses, quando os números da Balança Comercial de 2025 forem divulgados, o total das exportações do país será muito parecido — ou até superior aos US$ 165 bilhões exportados em 2024. Isso mesmo! O valor da previsível redução dos negócios com os Estados Unidos poderá, no primeiro momento, ser mascarado pelo aumento das vendas a outros países. O momento internacional é favorável aos principais produtos da pauta brasileira — como a soja e o minério de ferro. O início da construção pela China de cinco hidrelétricas ao longo do rio Yarlung Zangbo, no Tibet, com investimento previsto de US$ 170 bilhões, estimulará as exportações de minério de ferro e de aço — e dará a impressão de que o Brasil pode sobreviver sem vender um alfinete à maior economia do mundo. O problema está justamente aí: na provável impressão inicial de que os efeitos do rompimento, no final das contas, não serão tão graves assim. Não se trata de quantidade, mas da qualidade das exportações. O que há de mais grave na redução da remessa de mercadorias para os Estados Unidos, porém, é o impacto que isso pode causar no perfil da economia brasileira. Se nenhum dos lados ceder, os efeitos de médio e de longo prazo para o Brasil tendem a ser cruéis. Eles atingirão o país naquilo que a economia tem de mais dinâmico e promissor: a produção industrial de ponta, baseada em inteligência e em produtos de alta tecnologia como aviões, máquinas e equipamentos para o agronegócio, equipamentos eletroeletrônicos e uma série de artigos que o Brasil continua produzindo — embora os “analistas” de plantão insistam em olhar para as exportações nacionais apenas pela pujança das vendas de produtos primários, como a soja e o minério de ferro. Nesse cenário, chega a ser louvável o esforço do vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin, em insistir na busca de uma solução negociada. Na quinta-feira passada, Alckmin falou de uma reunião por videoconferência que manteve no sábado retrasado com o secretário de Comércio dos Estados Unidos, Howard Lutinick. Foi, segundo Alckmin, “uma conversa longa, colocando todos os pontos e destacando o interesse do Brasil na negociação”. A solução, porém, esbarra em dois problemas concretos. De um lado, parece que Trump quer fazer do Brasil um exemplo para outros países latino-americanos que ousem desafiar a influência dos Estados Unidos. Do outro, parece que Lula se apegou ao confronto com Trump como a solução para recuperar sua popularidade e, em nome disso, age como se não quisesse que o problema se resolva.   A intenção da conversa com Lutinik, segundo Alckmin, foi buscar uma solução para a questão comercial, seguindo a orientação do presidente Lula de não contaminar a negociação com “questões políticas ou ideológicas”. Pois bem… Mais ou menos na mesma hora que vice-presidente defendia, em Brasília, um diálogo que parece ter morrido na primeira conversa, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fazia na cidade mineira de Minas Nova um discurso para lá de inflamado. Em a seu estilo eloquente, Lula respondeu a uma declaração do encarregado de Negócios dos Estados Unidos, Gabriel Escobar, que teria manifestado a empresários o interesse americano em minerais estratégicos que faltam a seu país e que o Brasil tem em abundância.   “Ninguém põe a mão” Minas Novas fica no centro do Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais miseráveis do país, que passou a sonhar com o desenvolvimento a partir da exploração de jazidas de lítio descobertas na região. Principal matéria prima para a produção das baterias que alimentam de tudo — de celulares a automóveis —, o lítio tornou-se extremamente cobiçado pela indústria moderna. A seu estilo, Lula levou ao delírio uma plateia de apoiadores fiéis com um discurso nacionalista sobre o assunto. “Temos todo nosso petróleo para proteger. Temos todo nosso ouro para proteger. Temos todos os minerais ricos, que vocês querem, para proteger. E aqui ninguém põe a mão. Este país é do povo brasileiro”, afirmou o presidente. O grande problema está justamente aí, na ideia de que “ninguém põe a mão” nas riquezas do país. Ninguém até hoje, pôs a mão no lítio, que está há milhares de anos debaixo da terra no Vale do Jequitinhonha. Enquanto permanecer por lá, não levará um quilo de alimento sequer na mesa de uma das populações mais carentes do Brasil. Na medida, porém, que a exploração avance, ou seja, na medida em que “ponham a mão” no mineral, ele passará a gerar renda e ajudará a melhorar a vida do povo do Jequitinhonha. E mais: nas condições atuais da demanda por esse mineral, se o Brasil quer mesmo transformá-lo em riqueza, terá necessariamente que se entender com os Estados Unidos. O país não poderia vender seu lítio a China? Claro que poderia. Mas, ao contrário dos Estados Unidos, que dependem dos minerais raros produzidos na Ucrânia, no Brasil e em outros lugares, a China tem suas próprias jazidas de terras raras, capazes de suprir suas necessidades e até abastecer outros países. Resta ao Brasil, neste momento, se entender com os Estados Unidos. A questão — e nesse ponto Lula está coberto de razão — são as condições para os Estados Unidos ou qualquer cliente ter acesso a esses minerais. Para que essas condições sejam definidas em termos satisfatórios para os dois lados, os canais de negociação não podem estar obstruídos por pirraças ideológicas. Lula e Trump não precisam ser amigos nem compartilhar a mesa para uma cervejinha. O que eles não podem, porém, é tomar decisões com base na birra nem alimentar obstáculos que impeçam que sues países desfrutem o que de melhor um pode oferecer ao outro nas relações bilaterais. Nesse ponto, é preciso reconhecer mais uma vez que o empecilho ao entendimento não parte apenas da arrogância dos Estados Unidos, mas da política externa ideológica imposta ao Itamaraty pela dupla Celso Amorim e Mauro Vieira. O primeiro, assessor especial de Lula para assuntos externos, é um dos ideólogos da política que propõe o confronto com os Estados Unidos, o afastamento gradual da Europa e a hostilidade declarada a Israel. O outro, chanceler do Brasil, é o responsável por colocar tudo isso em prática. Pela visão da dupla, o Brasil ganhará muito se ficar a reboque de países como China, Rússia, Irã, Venezuela, Cuba e outros da mesma linha em “organismos multilaterais” formados mais por afinidades ideológicas do que por conveniências econômicas. Os parceiros preferencias do Brasil atualmente são ditaduras e, com exceção da China, que é uma potência econômica, os demais têm mais a tirar do que a oferecer ao país. Mesmo assim, o governo insiste em estar no meio deles e virar as costas para as democracias desenvolvidas como os Estados Unidos e os aliados tradicionais na Europa.  De todos os países relevantes do mundo, o Brasil tem sido o único — isso mesmo, único — que põe o tal de “multilateralismo” acima dos próprios interesses. Na semana passada, no calor do contencioso com os Estados Unidos, o muy amigo Nicolás Maduro, que deve sua permanência no poder, em boa parte, ao apoio que sempre recebeu dos governos petistas do Brasil, começou a taxar a entrada de produtos brasileiros na Venezuela com tarifas que vão de 15% a 77%. Esse é o “multilateralismo” praticado pelos aliados que Lula sempre apoiou, defendeu e sustentou! Há outros exemplos, até em países mais sérios do que a Venezuela. Veja por exemplo o caso da França, sempre elogiada por Lula como um modelo de democracia e amizade. Se colocasse os interesses “multilaterais” do bloco do qual faz parte, a União Europeia, acima dos seus próprios interesses, o très sympathique presidente Emmanuel Macron já teria dito sim ao acordo de livre comércio com o Mercosul. O acordo, como se sabe, permitiria o acesso da população europeia a alimentos mais baratos e abundantes. Mas Macron ignora as razões “multilaterais” e prefere defender os interesses dos agricultores de seu país do que garantir a segurança alimentar na Europa. Outra coisa: se estivesse preocupado em se manter em harmonia com o G-7, o grupo dos países mais ricos do mundo, ao qual é ligado por interesses e conveniências, Macron não teria declarado, como fez na semana passada, a decisão de reconhecer a Palestina como um Estado. Fez isso para tentar atrair a fidelidade eleitoral da crescente população muçulmana de seu país. O resto, que se dane! Macron e Maduro põem seus interesses acima de tudo. “Mmultilateralismo” para eles, começa e termina naquilo que lhes é conveniente. O Brasil, enquanto isso, parece preferir andar para trás abraçado à Rússia e ao Irã do que prosperar ao lado do mercado americano. Tomara que isso seja apenas uma impressão. Tomara.



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