quem fazia os bondes deslizarem nos trilhos


Herói anônimo: quem fazia os bondes deslizarem nos trilhos
Acervo São Paulo Antiga

Herói anônimo: quem fazia os bondes deslizarem nos trilhos

Imagine as ruas de São Paulo ou do Rio de Janeiro na década de 1920. O tilintar dos bondes cruzava o vaivém apressado de chapéus Panamá  e saias longas. Entre os vendedores ambulantes e os passageiros, havia uma figura solitária, quase invisível: o lubrificador de trilhos.

Com um tanque metálico às costas e uma mangueira em mãos, ele percorria a cidade ainda adormecida, antes mesmo do sol nascer. Varrias folhas, limpava o caminho e aplicava óleo nos trilhos, com uma precisão quase cirúrgica. Era esse trabalhador silencioso quem impedia solavancos, rangidos e até mesmo descarrilamentos dos bondes elétricos, então símbolo de progresso urbano no Brasil.

“Poucos sabiam seu nome, mas todos dependiam do seu ofício”, resume bem a importância desse profissional, que desapareceu das ruas junto com os próprios trilhos, nas décadas seguintes.

Bonde sentido Senador Vergueiro, em Botafogo.
Coleção Gilberto Ferrez

Bonde sentido Senador Vergueiro, em Botafogo.

Um trabalhador apagado pela história

Apesar de sua relevância, o lubrificador de trilhos raramente aparece em registros históricos, jornais de época ou estudos acadêmicos. De acordo com uma entrevista feita pelo Portal iG com o professor Paulo Terra, do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), esse apagamento é reflexo de uma tradição historiográfica que negligenciava justamente os profissionais técnicos do setor de transporte.

“Muitos estudos trataram mais das empresas, dos empresários, ou dos trabalhadores de ponta, como os condutores, fiscais ou mecânicos dos bondes. Profissões como a do lubrificador de trilhos, que eram fundamentais para o funcionamento do sistema, acabaram invisibilizadas”, explica Terra.

Segundo o professor, o trabalho desse profissional ia além de aplicar óleo: ele também limpava os trilhos, pois o acúmulo de sujeira podia comprometer seriamente a circulação dos bondes. Ainda assim, não há menções a esses trabalhadores em registros sindicais da época ou nos jornais operários, mesmo em um momento em que o movimento trabalhista começava a se organizar no país.

Bonde elétrico
Coleção Mestres do Séc. XIX

Bonde elétrico

Entre graxa, silêncio e precarização

A função do lubrificador de trilhos revela um Brasil em transição: da tração animal para o transporte elétrico; das pequenas companhias para grandes empresas de mobilidade urbana. Um tempo de modernização acelerada, mas também de extrema precarização do trabalho.

“Estamos falando de um período em que praticamente não existiam direitos trabalhistas”, lembra Paulo Terra.

“Trabalhadores podiam ser demitidos sem qualquer compensação, não havia garantias em casos de acidente ou doença, e a fiscalização das empresas sobre os funcionários era extremamente rigorosa.”

De acordo com o historiador, o fim dos bondes e o avanço das tecnologias levaram ao desaparecimento de profissões como essa, um processo que se repete hoje, diante de novas transformações, como a automação e a inteligência artificial.

Bonde e ônibus em frente ao Palácio Pedro Ernesto
Arquivo Brascan – Cem Anos no Brasil

Bonde e ônibus em frente ao Palácio Pedro Ernesto

“Assim como o lubrificador de trilhos viu seu ofício desaparecer com a chegada dos ônibus e o fim das linhas férreas urbanas, hoje também vivemos um momento de incerteza, com o temor de que novas tecnologias substituam muitos postos de trabalho”, compara.

Da história esquecida à memória urbana

O último bonde circulou oficialmente em cidades como São Paulo em 1968. Com ele, sumiram os trilhos (muitos enterrados sob o asfalto) e os trabalhadores que os mantinham vivos. Eventualmente, pedaços desses trilhos reaparecem em obras urbanas, como no centro de São Paulo, revelando uma infraestrutura quase arqueológica.

Mas a memória do lubrificador de trilhos segue sendo uma espécie de fósforo apagado na história do trabalho urbano brasileiro. Como aponta Paulo Terra, o desafio dos historiadores hoje é justamente resgatar essas figuras negligenciadas:

“O que essa reportagem mostra é que, mesmo dentro do grupo dos trabalhadores, havia hierarquias de visibilidade. E muitos, como o lubrificador de trilhos, ficaram completamente apagados da nossa memória coletiva”, conclui.



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