Ninguém vira guerreiro por correr uma prova longa – 23/05/2025 – No Corre


Se você já participou de uma prova de corrida mais longa, uma maratona, quem sabe, provavelmente já foi chamado de guerreiro pelo sujeito parado na calçada.

“Bora, guerreiro, vamo, falta pouco.”

O admirador —é isso sem tirar nem por que ele é— usa esse vocativo bastante bélico, talvez um tanto religioso, como incentivo 100% sincero.

(O “falta pouco” em geral é menos sincero.)

Por um instante, viramos o herói possível, à mão, prêt-a-porter, do tiozinho da calçada.

Quando o admirador fala “guerreiro”, ele demonstra que as pessoas seguem a associar corridas, especialmente as de resistência, a sacrifício. Não está sozinho: palavras como “entrega”, “desafio”, “luta” e, claro, “dor”, pululam no léxico da corrida e da atividade física de modo geral, muito mais do que “prazer”, “diversão”, “relaxamento”, “buena onda”.

É compreensível: a exaustão física tem um pé no transcendente. Dívidas e acordos com o divino são celebrados e pagos com procissões, romarias, escaladas, esforços incomuns. Numa palavra, com sacrifício. Deus é figurinha fácil nas provas de corrida.

Pois eu digo: não há, ou não deveria haver, heroísmo, beligerância, dor, sacrifício na corrida, quaisquer que sejam as distâncias.

De início, há a situação, bastante confortável, de o corredor ter escolhido por conta própria correr. Não colocaram uma automática em nossas têmporas, não fomos obrigados a isso, como no caso do soldado do mito fundador da maratona na Antiguidade.

A ideia de que só o esforço traz resultados é respaldada por muitos educadores físicos, que, de fato, não estão de todo errados. O aumento de condicionamento vem quando o corpo responde a estímulos distintos daqueles a que já está acostumado. Como diria o Murakami, o escritor, maratonista e eterno perdedor do Prêmio Nobel, nossas coxas são burros de carga e respondem ou relaxam de acordo com a demanda.

Mas é possível terminar uma corrida longa, e aumentar gradativamente sua distância, virar mesmo um ultramaratonista, sem responder a estímulos muito distintos daqueles já conhecidos. Ou seja: sem grande esforço. Diminuir o tempo pessoal, correr com muito mais intensidade, isso daí já é outra história.

Essa minha cisma com o elogio do guerreiro não é nova, mas foi reavivada depois que assisti à peça “Primavera cega”, no espaço Zona Franca, no Bixiga, em São Paulo. O espetáculo, que está em cartaz até a próxima segunda-feira (26), tem apenas o ator –e autor– Igor Iatcekiw em cena. Ele interpreta a si mesmo e à mãe, a quem não consegue dar um último beijo no leito do hospital. Igor não logra se despedir dela por ter sido violentado e precisar ele mesmo ser hospitalizado. Era o segundo episódio de estupro de que fora vítima.

Embora não busque confundir o público com recursos de autoficção, a peça é efetivamente teatro, não um relato jornalístico como posso estar a deixar transparecer aqui. Igor trabalha dimensões complexas desse seu trauma com enorme habilidade cênica. E, principalmente, com coragem absurda para enfrentar uma plateia diversa a centímetros dele, plateia em que poderiam estar presentes —por que não?— seus violentadores.

Bora, guerreiro, falta pouco.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.



Folha de S.Paulo