Saúde e nutrição com Clayton Camargos: ultraprocessados
Ultraprocessado não é alimento. É uma construção química, comestível, hiperpalatável e frequentemente irresistível, mas que passa ao largo da nutrição. Uma matéria comestível de engenharia industrial, cujo valor nutritivo é tão artificial quanto sua composição. Não se trata apenas de fast food ou refrigerantes: estamos diante de uma nova era alimentar, regida por algoritmos de arco-íris de prazer, toneladas de lucros, não por princípios de saúde.
O conceito de alimentos ultraprocessados foi introduzido e amplamente desenvolvido pelo Dr. Carlos Monteiro e sua equipe do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), dentro do sistema NOVA de classificação dos alimentos.
Segundo Monteiro, pós-doutor pelo Instituto de Nutrição Humana da Columbia University e Professor Titular do Departamento de Nutrição da USP; ultraprocessados são formulações industriais constituídas majoritariamente por substâncias derivadas de alimentos, mas submetidas a processos intensos — como hidrólise, extrusão ou moldagem — e frequentemente combinadas com aditivos cosméticos (corantes, aromatizantes, emulsificantes, acidulantes). O objetivo não é nutrir, mas seduzir: imitar o sabor da comida e capturar o desejo.
Historicamente, o surgimento e a explosão dos ultraprocessados coincidem com o avanço do capitalismo industrial, a urbanização acelerada e a desestruturação dos modos tradicionais de produção e preparo dos alimentos. O que se anunciava como praticidade e inovação técnica transformou-se, em poucas décadas, em epidemia. A transição alimentar que acompanhou a globalização e a expansão das cadeias de supermercados impôs ao mundo um novo padrão dietético: mais açúcar, mais gordura, mais sal — e menos comida de verdade.
Os impactos para a saúde coletiva são massivos e bem documentados. Um estudo publicado no British Medical Journal aponta que o consumo elevado de ultraprocessados está diretamente associado ao aumento do risco de obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão, doenças cardiovasculares, depressão e até certos tipos de câncer.
Uma meta-análise de 2024 publicada no mesmo periódico científico identificou associação consistente entre dietas ricas em ultraprocessados e maior risco de mortalidade por todas as causas.
Para a economia da saúde, o custo é astronômico. Segundo relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2019), os sistemas de saúde gastam, em média, 8,4% do seu orçamento com doenças crônicas não transmissíveis ligadas diretamente a maus hábitos alimentares. Estamos falando de custeio e não investimento.
No Brasil, estima-se que o SUS tenha gastado mais de R$ 3 bilhões em 2023 apenas com hospitalizações relacionadas à obesidade e diabetes tipo 2 — patologias frequentemente alimentadas por dietas ultraprocessadas.
Mas por que comemos o que sabemos que nos faz mal? A resposta não é simples, nem individual. Trata-se de um sistema. Michael Pollan, em O Dilema do Onívoro (2006), aponta que estamos em uma cadeia alimentar industrial que dissociou o alimento da natureza e o conectou ao marketing, à psicologia do consumo e à engenharia sensorial. O prazer de comer foi sequestrado e redesenhado para fins comerciais.
Pierre Bourdieu, em A Distinção (1979), nos ajuda a compreender que o sabor não é natural, é socialmente construído. A escolha alimentar não é livre: é moldada por classe, por capital simbólico e pela indústria cultural. Os ultraprocessados exploram, sobretudo, os corpos periféricos — os mais expostos à publicidade agressiva, ao desmonte das políticas públicas e à precariedade alimentar. A fome, nessa dimensão, se alimenta de biscoitos recheados.
Do ponto de vista biológico, os ultraprocessados não saciam. Ao contrário: promovem um consumo contínuo e impulsivo, pois desregulam os mecanismos hormonais da fome e da saciedade, como demonstram estudos sobre o impacto dessas substâncias no eixo leptina-insulina-grelina. O corpo entra num ciclo de hiperfagia, inflamação crônica e resistência metabólica. A comida de mentira gera um apetite maldito — infinito.
Seria possível apontar benefícios? Sob a ótica estritamente técnica, os ultraprocessados oferecem durabilidade, conveniência e acessibilidade. Em regiões com insegurança alimentar severa, podem parecer a única opção disponível. Contudo, essa aparente vantagem é armadilha. Marion Nestle, em What to Eat (2006), adverte que o acesso não pode ser confundido com soberania alimentar. A comida ultraprocessada é abundante, mas não liberta — vicia.
O desafio, portanto, não é apenas reduzir o consumo, mas resgatar a cultura do alimento real. É preciso uma pedagogia do paladar, uma educação nutricional crítica, uma política pública de regulação — da rotulagem à tributação. A propaganda de ultraprocessados voltada ao público infantil, por exemplo, deveria ser tratada como o que é: uma violação sanitária, social e ética. A exemplo do tabaco, urge uma regulação robusta.
Transpor os ultraprocessados da alimentação demanda mais do que disciplina individual. Exige ação coletiva, reforma estrutural, investimento em agricultura sustentável e políticas de abastecimento que priorizem o alimento de verdade. Requer, sobretudo, consciência de que comer é um ato político, cultural e biológico.
Se a humanidade passou da caça à agroecologia, da fermentação artesanal ao fast food, ainda é possível — e necessário — retornar à mesa com dignidade. Comer bem é resistir. É um ato de urbanidade, de autocuidado e de fraternidade universal.
Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para [email protected] e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.
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